Título: Bush subestimou Putin
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2008, Notas e Informações, p. A3

Até há pouco, imaginava-se que o presidente George W. Bush, a 20 semanas de deixar a Casa Branca e reprovado por quase 70% dos americanos, não teria mais tempo, ânimo ou ocasião de ampliar a sua coleção de fiascos na arena internacional. Os otimistas não contavam, porém, com a capacidade de seu protegido Mikhail Saakashvili, o presidente da Geórgia, de confrontar inadvertidamente os Estados Unidos com as primeiras conseqüências efetivas da estulta estratégia do bushismo de criar casos com a Rússia, como se ela ainda fosse a superpotência falida dos anos 1990 e como se o determinado Vladimir Putin tivesse qualquer semelhança com o trôpego antecessor Boris Yeltsin. Com sua característica miopia, o governo Bush cercou de minas políticas as áreas que, desde os tsares, a Rússia considera suas legítimas esferas de influência.

Foi como o Kremlin interpretou o escancarado endosso de Bush à Revolução Laranja de 2004-2005, que levou ao poder na Ucrânia o pró-ocidental Viktor Yuschenko; a instalação de mísseis na Polônia e na República Checa, alegadamente contra o Irã; o apoio à independência da antiga província sérvia do Kosovo, consumada em fevereiro; e a transformação da Geórgia, na crucial região do Cáucaso, em Estado-cliente de Washington. Os EUA chegaram a patrocinar o ingresso do país na OTAN, a aliança militar ocidental -, o que a Rússia avisou que faria tudo para impedir. A provocação foi vetada pela União Européia, que depende do suprimento russo de gás. O Cáucaso é historicamente uma colcha de retalhos de etnias, religiões e nacionalidades, uma incubadeira de rancores e violência sectária, em meio à beleza natural e às riquezas do subsolo.

A Geórgia, anexada ao Império Russo e depois à União Soviética, se tornou independente com o colapso da URSS. Em 2003, uma Revolução Rosa substituiu no governo de Tbilisi o ex-chanceler soviético Eduard Shevardnadze pelo americanófilo Saakashvili, que inauguraria uma política de ocidentalização do País. Mas, na Geórgia, o banditismo disseminado se confunde com os movimentos separatistas nas áreas de maioria russa da Abkházia e da Ossétia do Sul, que querem formar um país com a Ossétia do Norte, vinculado à Rússia. No governo Shevardnadze, a Geórgia concedeu a ossétios e abkhazes uma autonomia próxima à independência. Ainda assim os conflitos continuaram a queimar. Como a raposa no galinheiro, uma força de paz encabeçada pela Rússia entrou nas províncias em 1992. Depois, Moscou passou a distribuir milhares de passaportes russos aos locais, para alegar que as suas tropas entravam em ação em defesa dos seus concidadãos contra os georgianos.

A situação se agravou quando os insurgentes tomaram Tskhinvali, a capital sul-osseta. Na sexta-feira passada, enfim, num monumental erro de cálculo, Saakashvili mandou invadir a província. Bush, de seu lado, parecia acreditar que persuadiria Putin, com quem se encontrou em Pequim, a limitar ao território em disputa a pronta intervenção aérea e terrestre russa - antes de aceitar um cessar-fogo. Prontamente, isso sim, o primeiro-ministro voou para Vladikavkaz, no lado russo da fronteira, assumindo para efeitos públicos o comando do bombardeio e invasão da própria Geórgia. Ontem, Moscou exigiu que as tropas georgianas na divisa com a Abkházia depusessem as armas - sinal de que Putin está pronto para ampliar os objetivos de sua ação militar. O objetivo, no limite, é uma ¿mudança de regime¿ em Tbilisi. Saakashvili, afinal, prometeu reincorporar à Geórgia as regiões separatistas. Outra meta é assumir o controle militar nas províncias e afirmar sua hegemonia política no Cáucaso.

Bush invoca ¿a soberania e integridade territorial¿ da Georgia. O vice Dick Cheney diz que ¿a agressão russa não pode ficar sem resposta¿. Duvida-se que os americanos tenham uma resposta realística para ¿conter¿, como se diria na guerra fria, a revigorada Rússia de Putin no que ela entende ser o seu quintal. Ainda mais quando Washington precisa de Moscou para prevenir um Irã nuclear. Ao mesmo tempo não pode simplesmente entregar aos russos um aliado que mandou 4 mil homens para o Iraque. Os EUA de Bush só podem culpar a si próprios por mais essa enrascada.