Título: A bolha macunaíma
Autor: Flores, Mario César
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2008, Espaço Aberto, p. A2
Aparentemente, vai tudo bem: presença internacional, aceleração do crescimento, inflação controlada (?), grau de investimento, reservas vultosas, candidatura a sede de Olimpíada (no tranqüilo e seguro Rio de Janeiro...), bancos ganhando enormidades, indústria e comércio felizes com o crédito-aventura, agronegócio reclamando do dólar baixo e surfando no mercado global, classe média consumindo e fazendo turismo, desemprego em queda, povo incluído satisfeito em seus anseios pequeno-burgueses e o excluído, conformado na informalidade e no assistencialismo. Este artigo aborda a insegurança dessa aparente felicidade diante de fatores negativos da nossa combinação de Estado de que tudo se espera, de proteção e apoio à tolerância permissiva, com a psique coletiva resistente a valores, deveres e limites da vida em comunidade.
Realça de imediato a deterioração da missão cívica da política e da administração pública, assimilada pela sociedade, que, em vez de indignação, quer usufruir o Estado paradisíaco, haja vista o interesse pelo serviço público e pelo apoio estatal, do capital à exclusão assistida. A associação da deterioração cívico-política com a leniência societária dá espaço a tudo: partidos sem programas e projetos, abertos a conluios oportunistas sem consistência ideológica, micropolítica imediatista acima da política de maior prazo, que não produz dividendos eleitorais rápidos, estatismo e as condutas viciosas que lhe são inerentes, loteamento (político, familiar e, recentemente, também sindical) de milhares de cargos comissionados, naturalmente propenso a situar a conveniência política (evidenciada no número de Ministérios) e o privilégio acima da competência e do mérito, encargos do Estado mal atendidos em razão do desempenho político-administrativo insatisfatório, grevismo no serviço público, abusivo e impune, que faz do povo refém da sua capacidade de chantagem ¿ enfim, desacertos de toda ordem, de que os citados são representativos.
Outra macrorrazão da insegurança da situação supostamente feliz é o desrespeito pandêmico à lei (e à Justiça, manifesto na resistência ao cumprimento de sentenças de reintegração de posse) e a correlata banalização da anormalidade, do jeitinho trivial à desordem, violência e criminalidade, à insegurança individual e patrimonial. O certo-errado é hoje uma antinomia conceitual ambígua, tolerante com o ilícito, da invasão e destruição de fazendas, sedes do Incra, Reitorias e até da Câmara dos Deputados (!), do mensalão e cartão corporativo, ao simples carro na calçada. Mesmo quando grave, o ilícito cai rapidamente no esquecimento, uma vez saturado seu potencial de espetáculo midiático. Nos episódios de violência os sistemas de segurança são comumente acusados, com ou sem razão, como culpados pelas conseqüências (a delinqüência não indeniza...). Já existem áreas em que a delinqüência controla a ordem, caracterizando a coexistência dos Estados formal de direito e paralelo (da delinqüência) e já vivemos sintomas (por ora claros no Rio de Janeiro) de ameaça insólita: a da delinqüência no processo eleitoral, na configuração do poder legal!
A terceira razão expressiva, influente na formação do poder político (na condução da vida nacional...) e no desapego pela ordem legal, é a combinação do ensino precário (suas ilhas virtuosas não neutralizam a mediocridade geral) com a hegemonia da vulgaridade na cultura, até na classe média. Em vez de ensino de boa qualidade, do fundamental à ciência e ao humanismo, à semelhança do que fizeram países recentemente bem-sucedidos, optamos por recursos ao estilo ¿progressão continuada¿ e cotas. Quanto à fatuidade cultural, figuremo-la sinteticamente nestas manifestações emblemáticas: programas da TV (e filmes apoiados por recursos públicos, alguns eivados de licenciosidade vista como arte) que aluem a nossos já fracos padrões culturais, abastardamento televisado da religião, enaltecimento de anomalias (sexual, nos costumes), exaltação do lazer em detrimento do trabalho (a apoteose do feriadão), a anestesia psicossocial lúdica (futebol, carnaval, réveillon, etc.) e o consumismo paranóico estimulado por propaganda de mau gosto ou equívoco padrão moral. Particularmente sintomática, a relativa desimportância do nosso mercado de livros.
Estamos, de fato, vivendo razoável crescimento econômico que, com altos e baixos, vem gerando reflexos positivos, embora limitados, sociais e internacionais, mas esse avanço não tem sido acompanhado por avanços correspondentes na política, no respeito à lei, na educação e na cultura. O descompasso valida a dúvida: o crescimento econômico aparentemente feliz e seus reflexos positivos têm fundamentos sólidos ou, mais dia, menos dia, sua continuidade será abalada não apenas por percalços econômicos alheios ao escopo deste artigo (infra-estrutura precária, problemas no mercado internacional, por exemplo), mas também pela areia movediça política, sociocomportamental, educacional e cultural?
O sucesso de qualquer país, e muito mais de país complexo como o Brasil, exige seriedade na distinção entre o mero crescimento e o desenvolvimento lato senso, entre o certo e o errado, entre o lúdico e o dever, entre o pífio e a qualidade, entre o despreparo indutor do atraso e o saber promotor do avanço. A inobservância dessa distinção põe em risco o progresso com eqüidade social e coesão nacional e compromete a essencialidade da democracia (o crescimento em si é complacente com o autoritarismo: China, hoje). Motivo de júbilo, o crescimento em curso não garante sozinho a ascensão do Brasil ao status a que o credencia seu potencial. Pode levá-lo ¿ tem levado ¿ a incursionar pontualmente no jogo do mundo mais desenvolvido, mas não teremos visto de entrada plena e permanente nele se não controlarmos nossa bolha macunaíma, capaz de sufocar o fôlego do crescimento.
Mario César Flores é almirante-de-esquadra (reformado)