Título: O que move Cristina
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/08/2008, Notas e Informações, p. A3

Com o anúncio de medidas de grande repercussão, a presidente argentina, Cristina Fernández de Kirchner, tenta recuperar seu prestígio, seriamente abalado pela crise desencadeada pela derrota que sofreu no Senado em julho - a rejeição de seu projeto de sobretaxar produtos agrícolas - e que é considerada a pior do país desde o fim da aventura da paridade cambial, em 2001. Ela quer evitar que os fracassos acumulados em tão pouco tempo de governo - assumiu o cargo em 10 de dezembro de 2007 -, e que reduziram o índice de aprovação a seu governo de 60% para menos de 20%, contaminem os quase três anos e meio de mandato que lhe restam.

No front externo, conseguiu o que seguramente considera uma importante ajuda financeira de seu principal aliado internacional, o presidente venezuelano Hugo Chávez, que decidiu adquirir títulos do Tesouro argentino no valor total de US$ 1,4 bilhão. Como necessita muito de dinheiro do exterior, o governo de Cristina Kirchner aceitou o preço oferecido por Chávez, que implicou desconto de 28,6% sobre o valor de face (Chávez pagou apenas US$ 1 bilhão). Mesmo assim, o governo argentino achou bom o negócio, porque, após o monumental calote aplicado pela Argentina na comunidade financeira internacional em 2002, Chávez se tornou uma espécie de emprestador de última instância para o país.

Mas, muito mais do que para os argentinos, o negócio foi ótimo para Chávez e os bancos venezuelanos. O custo real do empréstimo chega quase a 15% ao ano, cerca de 10 pontos porcentuais mais do que custaria um empréstimo do FMI. Além disso, Chávez formou uma corrente da felicidade com os títulos argentinos. O jornal Clarín, de Buenos Aires, constatou que, tão logo os teve nas mãos, o governo venezuelano os repassou para os bancos pelo câmbio oficial (2,15 bolívares por dólar). Os bancos imediatamente os venderam para interessados em adquirir títulos estrangeiros, mas pelo câmbio paralelo (3,25 bolívares por dólar). Só nessa operação, que envolveu pelo menos metade do total de US$ 1,4 bilhão, os bancos ganharam mais de 50%. A operação teve como efeitos secundários o aumento da taxa de risco da Argentina e uma forte queda da bolsa de Buenos Aires.

No plano interno, durante quatro meses, metade do tempo em que está no cargo, Cristina Kirchner esteve envolvida numa violenta briga com o setor rural, ao qual pretendia impor uma taxação excessiva. Esse período de conflitos com o setor rural terminou há algumas semanas com a dura derrota que o Senado lhe impôs, ao rejeitar, com o voto decisivo de seu vice-presidente, Julio Cobos, a sobretaxação de produtos agrícolas. Desde então, ela vem tentando reconquistar o prestígio perdido com medidas populistas.

O governo continua forçando o órgão oficial de aferição de preços, o Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec), a anunciar índices falsos de inflação, o que corrói a credibilidade da instituição. Segundo o Indec, a inflação de julho foi de 0,4%, menos de um terço das projeções de institutos privados.

Também em busca de apoio, Kirchner anunciou a reestatização da Aerolíneas Argentinas, privatizada há duas décadas, e que está em estado pré-falimentar, e mais três medidas. A primeira é o aumento de 26,5% do salário mínimo, que deverá beneficiar 300 mil trabalhadores. De maior efeito social será o aumento, que deve ficar entre 20% e 25%, das aposentadorias e pensões prometido pela presidente para o ano que vem. Por fim, reajustou de 10% a 30% as tarifas de energia elétrica, que estavam congeladas desde 2001, com aumentos menores para os consumidores de renda mais baixa.

Indiretamente, o governo admite que a inflação é muito maior do que a oficial. Não é coincidência o fato de que as correções de tarifas e rendimentos anunciadas ou prometidas oscilem entre 25% e 30%. É essa a inflação anual estimada por instituições privadas.

Ao mesmo tempo que começa a admitir a inflação real, o governo afrouxa o congelamento de preços, instrumento de que fez farto uso. Isso ocorre num momento em que são visíveis os sinais de que a economia argentina, depois de um período de forte crescimento, começa a desaquecer. Para recuperar o prestígio nesse cenário, Cristina Kirchner terá que fazer muito mais do que já fez.