Título: Não há lei sobre órgão de '2ª linha'
Autor: Cimieri, Fabiana
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/08/2008, Vida&, p. A19

Esquema denunciado pela PF no Rio teria aproveitado brecha para manipular fila; em SP, regra impede burla

Fabiana Cimieri, RIO

O episódio que culminou na prisão do médico Joaquim Ribeiro Filho, acusado de desrespeitar a fila de transplantes de fígado no Rio, tem como pano de fundo uma questão para a qual não existe uma legislação nacional. É o uso de órgãos classificados no jargão médico como ¿marginais¿, ou seja, que estão no limiar da prestabilidade.

O Ministério Público acusa Ribeiro Filho e sua equipe de usar esse tipo de órgão em pacientes que não estavam no topo da lista, desrespeitando assim a legislação estadual, que determina sua análise pela Câmara Técnica de Transplante de Fígado. Se for classificado como marginal, deve ser destinado ao primeiro da fila.

O cirurgião João Ricardo Ribas Júnior, da equipe de Ribeiro Filho, confirmou que o médico não usava o órgão no primeiro da fila, mas por motivo técnico: ¿Quem está no topo da lista tem chance grande de receber um fígado ideal; para esse, é um mau negócio receber um órgão marginal.¿ Entre os problemas mais comuns que fazem com que um fígado seja considerado limítrofe está a estenose (excesso de gordura) ou a parada cardíaca, que provoca problemas de vascularização do órgão do potencial doador.

Para a superintendente de Atenção Especializada em Gestão de Tecnologia da Secretaria Estadual da Saúde do Rio, Hellen Myamoto, a equipe de Ribeiro Filho burlou a legislação. Ela afirma que a Câmara Técnica está em condições de dar seus pareceres em tempo hábil para que o fígado possa ser transplantado. ¿A equipe (médica) não tem autonomia, o paciente tem de estar na lista e a Câmara tem de dar parecer favorável.¿

Instituída em 2006, até hoje a Câmara Técnica não foi acionada: ¿As operações do doutor Joaquim com fígados marginais ocorreram à revelia da central de transplantes¿, diz ela.

Questionada sobre o motivo da instituição da Câmara Técnica, Myamoto disse que todo processo de captação e doação é normatizado pelo Ministério da Saúde e que a burocracia e o critério de priorização, definido pelo índice de Meld, são nacionais.

¿A decisão tem de ser técnica, a equipe não pode ter autonomia, porque senão acontece isso que está acontecendo¿, afirma.

A Secretaria Estadual de São Paulo informa que não usa essa classificação de fígado marginal. O que existe são fígados bons para serem transplantados ou os que não servem. Quando o órgão é aprovado, vai para o primeiro da fila que é compatível com ele.

O processo contra Ribeiro Filho, que corre na 3ª Vara Federal Criminal do Rio, julgará três casos suspeitos de desrespeitar a fila única de transplantes.

No primeiro, em 2003, a equipe médica do Hospital Clementino Fraga Filho operou Jaime Ariston,o irmão do ex-secretário de Transportes Augusto Ariston, que estava em 32º lugar na lista de espera. Em sua defesa, Ribeiro Filho alegou que o fígado era marginal.

No segundo caso, o do transplante de Carlos Alberto Arraes, filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, o órgão estava em bom estado, mas seria descartado porque não havia quem pudesse fazer o frete de Minas para o Rio.

No terceiro, o órgão foi classificado como marginal pela equipe médica, porque o doador sofrera três paradas cardíacas, mas não foi transplantado, porque a Central Estadual de Transplantes o interceptou para exames. Descobriu-se que o fígado estava em bom estado, mas era tarde demais para transplantá-lo.