Título: A política de 'combate' a cartéis
Autor: Sampaio, Onofre Carlos de Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/08/2008, Espaço aberto, p. A2

O termo ¿combate¿ sugere o uso de jargão policial-militar e certamente vem sendo adotado com esse sentido pelas agências governamentais encarregadas da defesa da livre concorrência. Cartéis são definidos pela doutrina como acordos ou práticas entre concorrentes para fixar preços, ofertas, estabelecer limitações à produção ou cotas, compartilhar ou dividir mercados por meio da alocação de clientes ou fornecedores, fixar territórios ou linhas comerciais.

As relações entre as sociedades e os acordos dessa natureza têm sido ambíguos no decorrer dos tempos. No Império Romano do Oriente a Constituição de Zeno, de 483 d. C., punia com exílio aqueles que acordassem a fixação de preços sobre determinados bens, mas em outras épocas e outros lugares, inclusive na Inglaterra e na Alemanha, até há alguns anos, houve cartéis que, em suas diversas formas e conteúdo, foram implícita ou mesmo explicitamente apoiados pelos governos, considerando-se que serviam para estabilizar mercados, proteger os produtores contra recessões cíclicas e competição estrangeira, facilitar o ordenamento e a racionalização dos mercados, evitar a superprodução, beneficiando vendedores e compradores.

O uso uniforme da expressão ¿combate a cartéis¿ é recente e deriva das recomendações da OCDE publicadas a partir de 1998, com o endurecimento da atitude das autoridades voltada para a defesa da competição contra os cartéis e a introdução dos programas de leniência, visando a criar incentivos para que membros de cartéis delatem seus parceiros em troca de imunidade contra as sanções previstas nas legislações de defesa da concorrência. No Brasil o instituto da leniência foi incluído na Lei de Defesa da Concorrência em 2000.

A concessão da leniência, conforme dispõe a nossa legislação, extingue ou reduz as sanções administrativas aplicáveis às empresas e pessoas físicas lenientes e isenta estas últimas da persecução criminal, embora sobre este aspecto persistam dúvidas de natureza constitucional.

A leniência, porém, ao exigir a confissão do leniente de que praticou o ilícito concorrencial, o expõe a ações de natureza civil, com vista à indenização de eventuais danos decorrentes da prática confessada.

O acordo de leniência também pode servir para a instauração, contra os lenientes, no exterior, de processos de natureza administrativa, civil e criminal, na medida em que outras agências de defesa da concorrência, terceiros que ali se julguem prejudicados e representantes de Ministérios Públicos possam ter acesso aos instrumentos dos acordos de leniência aqui firmados.

Reconhecendo que essa possibilidade pode transformar os acordos de leniência em verdadeiras armadilhas, de conseqüências imprevisíveis para seus subscritores, desestimulando o uso desse instrumento, a Comissão Européia vem tentando reduzir tal risco pela introdução da figura da leniência oral, feita em salas fechadas, mediante gravação por áudio, da qual não se fornece cópia. Apenas os advogados dos demais acusados podem ouvir a gravação, nas próprias instalações da comissão, sem qualquer possibilidade de regravação. Entendem aquelas autoridades que assim se preservam os lenientes do risco de que suas declarações venham a ser usadas contra eles em outras jurisdições, sobretudo nos EUA, onde, incentivados pelos institutos do discovery e das class actions, há uma intensa atividade judiciária nesse particular.

A Comissão Européia identificou igual problema em sua tentativa de implantar um sistema pelo qual as autoridades e os acusados acordem o desfecho antecipado do processo administrativo, sujeitando-se estes ao pagamento de determinada importância, com a vantagem de evitarem, para ambos, a álea processual, além de economizar recursos públicos e privados que certamente seriam despendidos com a maior duração do caso.

A hipótese de confissão nesses acordos, da mesma forma que no caso da leniência, torna-os desinteressantes para as partes na medida em que possam ser usados contra elas em outras jurisdições, com os mesmos resultados imprevisíveis de natureza administrativa, civil e criminal.

Por essa razão a comissão, em sua recente proposta de resolução sobre a matéria, tomou os mesmos cuidados adotados nos casos de leniência, prevendo que a submissão desses acordos também se possa dar oralmente e restringindo o acesso a eles e o seu uso.

No Brasil, a Lei 8.884/94, em seu artigo 53, contempla a possibilidade de realização de acordos dessa natureza, com vista ao encerramento de processos administrativos que correm junto à Secretaria de Direito Econômico (SDE) e ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), sem impor aos acusados a confissão do que lhes é imputado.

Mas, por resolução, o Cade instituiu a exigência da confissão e manifestações da SDE têm nela insistido, com o que os óbices acima referidos passam a incidir integralmente sobre a realização desses acordos, sobretudo quando se tratar de empresas exportadoras de bens e serviços, cuja exposição a ações no exterior, inclusive de natureza criminal, incidente sobre seus executivos, será sempre maior e de mais graves conseqüências.

Em decorrência disso, a exigência de confissão nos acordos de leniência e nos que visam à conclusão dos processos administrativos que tramitam na SDE e no Cade faz com que tais instrumentos imponham sérios riscos aos seus subscritores e, a menos que as autoridades brasileiras venham a conseguir , como está tentando a Comissão Européia, encontrar um meio hábil e seguro para evitar os inconvenientes apontados, haverá pouco estímulo à sua utilização, podendo se tornar impraticáveis à medida que isso for sendo percebido. Com o fracasso da Rodada Doha e o fortalecimento do protecionismo nos países importadores, certamente os riscos apontados se tornarão ainda maiores e mais preocupantes.

Onofre Carlos de Arruda Sampaio é advogado em