Título: Novo lançamento da imobiliária Palmares
Autor: Amorim, Cristina
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/08/2008, Vida, p. A19

O melhor negócio imobiliário do Brasil é bater na porta da Fundação Palmares. Que o digam as 17 famílias de moradores do Rio Jaú, prestes a receber as chaves de 719 mil hectares de floresta amazônica. São 422 quilômetros quadrados por família, num País em que o MST chama propriedades de 3 km2 de latifúndio. Com eles, privatiza-se um terço do Parque Nacional do Jaú, transferindo-o a ¿quilombolas¿ que ainda nem tiveram tempo de aprender a não se autodefinir como ¿carambolas¿.

¿Essas terras vão servir para meus filhos e netos¿, diz Sebastião Ferreira de Almeida, presidente da Associação de Moradores Remanescentes de Quilombo do Tambor. Assim ele explicou a lógica da demarcação à repórter Andréia Fanzeres, que tirou essa história da sombra que a escondia, sob as árvores na selva e no escurinho dos gabinetes em Brasília. O tamanho do quilombo não se baseia na história da escravidão nem nas tradições ribeirinhas, mas na intuição de que a hora é esta. Os 719 mil hectares, segundo Almeida, mostram ¿que temos cuidado com o futuro das gerações¿.

Dito assim, parece besteira. Mas não diverge, no fundo, dos argumentos da antropóloga Maria Bernadete Lopes da Silva, diretora do Departamento de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro, que a repórter também entrevistou. ¿Quem entendia que quilombo era um conjunto de escravos fugidos eram os senhores de engenho¿, esclareceu a diretora, como se ensinasse a semântica da politicagem. ¿Hoje, adotamos o conceito de quilombo contemporâneo, espaço que as comunidades têm para se multiplicar cultural e economicamente.¿

Em outras palavras, ao contrário do que proclama o jogo do bicho, aí vale o que não está escrito. Aliás, a titulação de quilombos no Brasil é, em si, um laboratório de informalidade jurídica. O processo se baseia num decreto do presidente da República que, de maneira inconstitucional, regulamentou um artigo da Constituição. A Fundação Palmares é um braço do Ministério da Cultura para ¿promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira¿. Mas comanda, em parceria com o Incra, uma revolução fundiária, para distribuir terras públicas que, somadas, transferem a propriedade de um território equivalente ao do Estado de São Paulo.

Tudo isso lastreado no princípio de que todo brasileiro herda, ao nascer, a dívida dos escravocratas, mesmo que nenhum de seus ancestrais tenha um pé na casa-grande, e que ele descenda de imigrantes que chegaram aqui depois da abolição. Ou mesmo que seja negro, mas não quilombola, com o selo da Palmares. Sem essa carta de crédito social, todo mundo deve ser desapropriado, pois as unidades federais de conservação são patrimônio inalienável de 187,4 milhões de brasileiros, e seis delas já estão na lista de desejos dos quilombolas.

Os moradores do Jaú, como noticiou Andréia Fanzeres, provêm de uma família que migrou de Sergipe para a Amazônia em 1907. Portanto, 19 anos depois da Lei Áurea. Eles vivem da extração de recursos naturais e, eventualmente, segundo o Ibama, de fornecer peixes ornamentais e tartarugas ameaçadas de extinção ao tráfico de animais silvestres. Seu isolamento, naqueles cafundós da Amazônia, não impediu que eles se miscigenassem, a ponto de só quatro famílias, das 15 que moram hoje no Tambor, serem reconhecidas como negras pelos funcionários do Instituto Chico Mendes. Mas isso não quer dizer nada. Como explicou o líder comunitário Sebastião Almeida, que mora na cidade de Novo Airão e se desdobra entre compromissos políticos em Brasília, Fortaleza, Bahia, Belém, São Luiz e Santarém, todo mundo ali tem ¿descendência da África e de Sergipe¿. Ah, bom!

* É jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)