Título: STF julgará menos casos e com impacto no Brasil inteiro
Autor: Scarance, Guilherme
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/08/2008, Nacional, p. A22

Marcos Paulo Verissimo: professor da Direito GV; estudo analisa ?ativismo à brasileira?: a mais alta corte do País amplia sua atuação política, mas não se livra da enxurrada anual de ações

Guilherme Scarance

Apesar de ocupar um papel cada vez mais influente, o Supremo Tribunal Federal (STF) recebe uma enxurrada de processos sobre conflitos corriqueiros. Em 1988, quando a Constituição delineou o seu perfil mais político e também ampliou o acesso à Justiça, a corte recebia 20 mil casos ao ano. Em 2006, foram 160 mil. O professor da Direito GV Marcos Paulo Verissimo está dando os arremates finais em uma pesquisa - a que o Estado teve acesso - sobre o que chama de "ativismo judicial à brasileira", ou seja, uma corte que deve ser protagonista, mas vive entulhada de ações. "A idéia é que, cada vez mais, o STF passe a julgar menos casos e as suas decisões tenham impacto relevante no Brasil inteiro", defende.

Vemos o STF interferindo cada vez mais em grandes temas nacionais, como o nepotismo, a Raposa Serra do Sol, o aborto de anencéfalos, etc... Isso é algo esperado?

Por um lado, é esperado. Por outro, reflete um movimento relativamente global de ampliação do poder, do espaço reservado ao Judiciário no plano político. Se relaciona diretamente ao modelo de jurisdição e modelo de Supremo Tribunal Federal montado pela Constituição de 88. Não me parece que seja um resultado casual. Não é excepcionalidade brasileira nem resultado casual do arranjo político do momento.

Qual foi a principal constatação do seu trabalho de pesquisa?

O espaço do STF no plano político se amplia enormemente desde a Constituição de 1988. Por outro lado, esse papel protagônico precisou conviver com uma outra configuração, uma espécie de última instância para questões menores. Termina julgando ou recebendo 160 mil processos ao ano, o que significa uma relação processo/juiz maior do que qualquer juiz de primeira instância: 8 vezes, 12 vezes maior. O trabalho procura detectar como o tribunal consegue dar conta das duas atividades: o que chamo de "ativismo à brasileira". O que apareceu em termos estatísticos é a enorme diferença entre o número de processos julgados e o volume de acórdãos publicados pelo plenário.

O sr. aponta que nesta década houve média de 109.411 processos/ano e 12.903 acórdãos publicados pelo plenário. O que significa?

Basicamente, que aqueles processos rotineiros têm sido julgados pelos próprios ministros relatores em seus gabinetes. São decisões que não são levadas nem às turmas e muito menos ao plenário. A verdade é que o STF julga esse enorme número de casos mediante decisões de um único juiz. As decisões importantes e protagônicas são aquelas que, realmente, chegam ao plenário.

Esses casos todos deveriam ser discutidos por toda a corte?

Boa parte desses casos nem deveria chegar ao Supremo. No fundo, o movimento de transformação que a pesquisa identifica é: cada vez mais se vão construindo filtros de modo a impedir que esses casos cheguem ao STF. A idéia é que, cada vez mais, o Supremo passe a julgar menos casos e as suas decisões tenham impacto relevante no Brasil inteiro. Eventualmente, vinculante.

Em outubro de 2007, o ministro Ayres Britto disse que, onde há inércia legislativa, entra o "ativismo judiciário". Ele está correto?

Creio que o papel reservado ao Supremo decorre naturalmente da Constituição de 88. Mas o trabalho de interpretação da Constituição cria coisas novas e envolve a composição de interesses ainda não definidos. É importante, por isso, que as decisões não se sobreponham, completamente, às tomadas no espaço representativo. O que ocorre é uma espécie de intercomunicação entre os Poderes, entre um espaço que é representativo, o Congresso, no qual vale a maioria, e um espaço deliberativo, que é o STF, no qual vale o bom argumento.

Há dados estatísticos sobre a atuação ativista da corte?

A percepção acontece pela observação da realidade, por uma série de fatores. Em primeiro lugar, porque o direito passou a regular, ainda que fracamente, abstratamente, as questões políticas. Por outro lado, os juízes entenderam que tinham um papel a cumprir na aplicação desse direito que cada vez mais se relaciona à política.

O trabalho aponta que o STF considerou procedentes 66,46% das 978 ações diretas de inconstitucionalidade julgadas pelo mérito entre 1988 e 2008. Como interpretar essa informação?

De duas formas. Ou as normas levadas à apreciação do STF são quase sempre inconstitucionais ou poderíamos considerar que o Supremo perdeu pudores de considerar inconstitucionais as normas, de interferir no espaço do Legislativo. O que pode significar, também, redução da deferência do tribunal ao parlamento, o que aí pode ser ruim. O importante é que não haja o predomínio.

O papel que o STF exerce é semelhante ao que ocorre no mundo?

É processo relativamente global. No século 19, quando observadores externos vão olhar a democracia americana, é um dado notado. A Suprema Corte é órgão muito político, desde aquela época. Já na Europa é mais recente, pois não havia praticamente jurisdição constitucional até a Segunda Guerra. Mas a atuação desses órgãos, do ponto de vista do número de casos, é muito mais racional que a do STF. Nossa peculiaridade é não ter filtros nem efeito vinculante. É isso que estamos tentando resolver.

Quem é: Marcos P. Verissimo

Formação em direito, com mestrado e doutorado na USP, com parte da pesquisa na Faculdade de Yale, nos EUA

É professor da Direito GV e também pesquisador

FRASES

"A verdade é que o STF julga esse enorme número de casos rotineiros mediante decisões de um único juiz"

"Nossa peculiaridade é não ter filtros nem efeito vinculante. É isso que estamos tentando resolver"

"Juízes entenderam que tinham um papel a cumprir na aplicação desse direito que cada vez mais se relaciona à política"