Título: Legalização dos bingos
Autor: Oliveira, Maria Paula Magalhães tavares de
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2009, Espaço aberto, p. A2

A discussão sobre a legalização de jogos de azar volta à cena. Depois de pressão por parte de empresários do setor, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou projeto permitindo a legalização do bingo e de outros jogos de azar, como videopôquer, caça-níqueis, etc. A tecnologia tornou os jogos sofisticados, atraentes e mais adictivos que os tradicionais. Mais pessoas jogam por tempo maior, portanto, arrecada-se mais. O noticiário brasileiro vem anunciando a invasão pela polícia de casas de jogo clandestinas. O argumento da legalização para acabar com a clandestinidade e o crime associado tem seu valor. Regulamentados, os jogos deveriam, todavia, ter regras claras, com a indicação da possibilidade real de ganho para cada modalidade de jogo e o destino de cada porcentagem do valor arrecadado. Máquinas de caça-níqueis não deveriam ser permitidas em locais públicos, como lanchonetes e padarias, mas apenas em locais de jogo, que deveriam seguir regras, como horário de funcionamento, sem permissão para instalação de caixa automática de banco nas dependências, distância mínima entre uma casa de jogo e outra, além de outras medidas destinadas a proteger os que perdem o controle sobre a atividade. Entretanto, os locais de jogo têm sido projetados para convidar o jogador a distrair-se e a não perceber a passagem do tempo, maximizando sua permanência no local.

O argumento central para a legalização salienta o desenvolvimento econômico que a atividade pode trazer. Ao se propagar que se trata de iniciativa que visa a aumentar a oferta de emprego, esquece-se de mencionar outros profissionais que serão imprescindíveis, caso a lei seja aprovada: médicos, psiquiatras, assistentes sociais, advogados, seguranças, enfim, uma gama de atividades necessárias para tratar das consequências nefastas do jogo. Divulga-se o impacto positivo na economia. Esquece-se, no entanto, de computar o custo associado ao jogo patológico, que se revela na diminuição de produtividade no trabalho, na inadimplência, em custos de cobrança de dívidas atrasadas, de processos judiciais, sem contar os que decorrem do atendimento à saúde, não só para o jogador, mas para seus familiares, que sofrem as consequências do comportamento do apostador. Insônia, cefaleias, gastrite e depressão em cônjuges de jogadores são apenas exemplos corriqueiros.

O projeto estipula porcentagem da arrecadação para a saúde, mas não prevê assistência aos que sustentarão a atividade, como é o caso do jogador patológico. Não são as senhoras que jogam em cartelas que dão lucro às casas de jogo, mas sim os que passam horas a fio apostando nas "maquininhas". Não há propostas de investimento para formar profissionais qualificados para diagnosticar e tratar o transtorno de jogo patológico. Aliás, ao contrário, a lei propõe discriminar os que sofrem em razão da perda de controle sobre o jogo, pois pretende criar um cadastro de ludopatas e limitar suas apostas. O que significa isso? Como se pretende identificá-los, com que critérios? E, ainda, como controlar suas apostas? E a ética, o direito ao sigilo? O jogo patológico é um transtorno como qualquer outro e merece atendimento adequado. Aqueles que se excedem e apostam mais do que podem, normalmente, têm muita vergonha e escondem seu comportamento. Negam as consequências, pois acreditam que na próxima jogada recuperarão tudo e resolverão todos os problemas. Relutam em pedir ajuda. Fazer um diagnóstico é tarefa complexa, que exige conhecimento técnico.

A literatura descreve três tipos de jogadores patológicos. O primeiro joga por causa da disponibilidade do jogo e, seduzido pela possibilidade de grandes ganhos, perde o controle. Quando o bingo foi proibido, esses jogadores ficaram aliviados e passaram a gastar seu tempo e seu dinheiro em outras atividades. O segundo tipo apresenta outros quadros psiquiátricos além da patologia do jogo. Estes procuram o jogo como forma de alívio de um sentimento de vazio, de angústia e beneficiam-se de tratamento. O terceiro tipo de jogador é o mais grave e difícil de tratar. Formado por pessoas impulsivas, dificilmente procuram ajuda. Assim, em vez de cadastro de ludopatas, a lei deveria propor cadastro de profissionais habilitados a diagnosticar e tratar esse transtorno, ou, no mínimo, capacitar e divulgar centros de atendimento. Os serviços existentes no País, lotados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (AMJO) e na Universidade Federal Paulista (Proad), só passaram a dar conta da demanda de atendimento quando as casas de bingo foram fechadas. Recebem solicitações de todo o País e não há profissionais a quem possam ser encaminhados tais casos. O jogo só deveria ser permitido em municípios preparados para lidar com suas consequências.

Chama a atenção o fato de não se falar em campanha de prevenção de jogo patológico. Enquanto se proíbe fumar em lugares públicos e se aperta o cerco contra beber e dirigir, enfim, evitando que terceiros sofram prejuízos associados a esses tipos de consumo, nada se fala em relação ao jogo. Não se esclarece o que é jogo de azar, que toda aposta envolvendo dinheiro configura jogo de azar, que essa atividade pode ser muito interessante e prazerosa, mas tem riscos associados, que algumas pessoas são mais vulneráveis do que outras, que essas pessoas podem perder o controle sobre a atividade. Enfim, que o jogo pode tornar-se patológico, criando dependência comportamental similar às dependências de drogas, inclusive nos seus aspectos neurobiológicos. Não se divulga, não se cuida, não se previne e depois teremos de correr atrás para sanar os prejuízos, sem aprender com a experiência já acumulada com as dependências de drogas.

Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira, doutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, é analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica