Título: Procura-se um chefe de Estado
Autor: Sérgio Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/09/2009, Espaço aberto, p. A2

No regime presidencial, estão enfeixadas numa só pessoa, o presidente da República, duas funções distintas: a do chefe de governo e a do chefe de Estado. Ao primeiro cabe a composição do Ministério, a formação e manutenção da maioria parlamentar, a gestão administrativa e a implementação de políticas. É da natureza de sua função tomar partido e lançar-se à batalha política. Do segundo, por sua vez, espera-se que exerça papel de árbitro entre as partes, tenha maior distanciamento da luta política imediata, oriente-se por uma perspectiva de longo prazo e represente, interna e externamente, o maior (e se possível o melhor) denominador comum do país, zelando pelo aperfeiçoamento das suas instituições.

São funções de difícil conciliação. Os regimes semipresidencialistas - como existem em Portugal e na França, por exemplo - separam-nas, deixando a primeira ao primeiro-ministro e a segunda ao presidente da República, ambos eleitos pelo voto direto. Nesses casos, o bom funcionamento do regime depende tanto das regras escritas (e não escritas) quanto dos traços de personalidade dos dois personagens, principalmente quando representam partidos distintos e maiorias eleitorais diferentes.

No presidencialismo, com as duas funções enfeixadas numa só pessoa, o difícil equilíbrio depende ainda mais de aspectos subjetivos. O peso desses aspectos aumenta conforme se aproxima o período eleitoral. É que então maior se torna o conflito potencial entre as funções de chefe de governo, legitimamente interessado em se reeleger ou eleger o candidato de sua preferência, e as de chefe de Estado. Existem regras que visam regular esse conflito, circunscrevendo o poder do chefe de governo. Mas, em última instância, o equilíbrio entre essas duas funções descansa sobre uma escolha individual, embora condicionada por regras formais e pelos costumes políticos vigentes, que, em alguns países, são mais frouxos que em outros.

Você provavelmente já entendeu aonde quero chegar. Sim, ao Brasil, às eleições de 2010 e ao presidente Lula. Seria um exagero e uma injustiça dizer que Lula mandou às favas a postura que se espera de um chefe de Estado. Basta constatar que ele não abraçou a tese do terceiro mandato, sepultada, em definitivo, por notável parecer do deputado José Genoino, do seu próprio partido. Não é pouca coisa, à luz do tamanho de sua popularidade, das dificuldades de encontrar, na base aliada, um outro candidato à altura e do (mau) exemplo de vários de seus pares na América Latina. Lula agiu, nesse caso, como chefe de Estado, pouco importando se movido ou não por cálculo político visando 2014.

Inegável, por outro lado, é o fato de que as ações de seu governo e as suas próprias, em particular, estão cada vez mais orientadas por um só objetivo: vencer as eleições presidenciais de 2010. Ao contrário do que propala, muitas dessas ações se fazem em detrimento dos interesses de longo prazo e das instituições do País.

Os exemplos recentes se acumulam. O mais óbvio deles é o empenho em salvar o presidente do Senado de uma punição que, por exemplar, seria um passo importante na exasperadora batalha pela renovação dos costumes políticos. Repete-se assim cena já vista no episódio do "mensalão".

Junta-se a esse comportamento reiterado uma retórica ufanista, que encharca toda e qualquer referência ao pré-sal e visa a estruturar o debate público de forma enganosamente plebiscitária, entre os que estão com ele, Lula, e, portanto, com o interesse nacional, e os que estão contra ele e, consequentemente, contra o interesse nacional.

A operação de propaganda política em torno do modelo de regulação e exploração do pré-sal está toda ela subordinada à lógica e ao tempo da disputa eleitoral, subordinação tão intensa quanto crescentes são as dúvidas sobre a viabilidade da candidatura de Dilma e decrescente o feitiço político do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

De um chefe de Estado seria de esperar atitude mais comedida, dadas as incertezas sobre o real potencial de receitas provenientes da exploração do pré-sal, e menos cega às restrições, cada vez maiores, que o combate à mudança climática imporá à utilização dos combustíveis fósseis. Seria de esperar também maior visão estratégica em relação às oportunidades associadas às energias renováveis, nas quais o Brasil tem vantagens competitivas que poderão desaparecer no médio prazo se não acompanharmos o avanço da fronteira tecnológica, liderado pelos Estados Unidos.

A ausência da atitude que se espera de um chefe de Estado é ainda mais flagrante na condução da concorrência internacional para a aquisição dos novos jatos de caça para a Força Aérea Brasileira. Pior do que o precipitado anúncio do vencedor da disputa, quando da visita do presidente francês, Nicolas Sarkozy, só mesmo a declaração que se seguiu às tortuosas explicações de ministros e assessores sobre o "verdadeiro sentido" da fala presidencial. Na esteira de seus auxiliares, Lula confirmou retoricamente que a concorrência continuava em aberto, mas completou dizendo que a decisão caberia exclusivamente a ele, por ser "estratégica".

Ora, justamente por ser de fato "estratégica", a decisão deveria ser tomada somente após o cumprimento de todas as etapas técnicas e jurídicas e a publicação dos pareceres técnicos, para conhecimento do País, e depois de um razoável debate público a respeito. Jamais à conveniência e ao gosto do chefe de governo.

Há, até aqui, um ausente óbvio nesse quadro de monólogo presidencial: o Congresso. Do Legislativo se espera que provoque o debate público sobre questões de tamanha importância, em lugar de se lançar à batalha sindical pela equiparação dos vencimentos dos parlamentares aos dos juízes do Supremo.

Está mais do que na hora.

Sergio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP E-mail: sfausto40@hotmail.com