Título: Não podemos ficar na vitrine para gringo ver
Autor: Mendes, Vannildo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/10/2009, Nacional, p. A4

Álvaro Sampaio Tukano: líder indígena[br]Primeiro índio a tirar passaporte diz que seu povo não quer mais estar a serviço de antropólogos e religiosos

BRASÍLIA

O nome de batismo é Álvaro Sampaio Tukano. Mas na aldeia do Alto Rio Negro, no Amazonas, onde despontou como um dos mais influentes líderes indígenas de sua geração, ele é conhecido apenas como Doèthiro. O nome, dado pelo avô, quer dizer "o primeiro homem" - em dialeto tukano, o correspondente a Adão, na teoria cristã do criacionismo.

Primeiro índio brasileiro a tirar passaporte, ele participou em Roterdã, na Holanda, em 1980, do Tribunal Bertrand Russel em defesa dos povos indígenas. "Os missionários querem acabar com as nossas lindas culturas, querem nos dominar, falar por nós", denunciou, na ocasião.

Começava ali uma nova fase para o movimento. Em entrevista ao Estado, Tukano diz que os índios querem eleger uma forte bancada no Poder Legislativo para ter "maior protagonismo" nas decisões do País.

Ele destaca que a comunidade evoluiu com a sociedade e não aceita mais a figura de tutelada. "Não podemos ficar eternamente na vitrine para gringo ver", declara. "Não queremos mais estar a serviço de antropólogos e religiosos que gostam de nos tutelar."

Por que você considera importante para os povos indígenas ampliar a representação política?

Evoluímos e estamos mais atentos para defender nossos direitos, porque, embora reconheçamos os avanços legislativos, eles quase sempre ficam no papel. É preciso exercer maior pressão nas Assembleias e no Congresso. Não podemos ficar eternamente na vitrine para gringo ver. Não somos mais aqueles índios de 1500, vistos por Cabral, nem queremos mais estar a serviço de antropólogos e religiosos que gostam de nos tutelar.

O governo tem sido desatento com as questões indígenas?

A falta de políticas públicas eficientes em diversos setores, como segurança e saúde, levou os índios a se organizarem em busca de maior protagonismo. Se de um lado avançamos na questão da demarcação de territórios, por outro está havendo recrudescimento da violência no campo contra indígenas e minorias. Foram dezenas de assassinatos impunes por questões de demarcação de terras nos últimos anos.

Por que a citação aos antropólogos e religiosos?

Eles tiveram um papel relevante na nossa formação inicial. Mas tivemos ao longo de séculos influências europeias e de diversas culturas. Nós índios evoluímos com a sociedade brasileira e queremos ir além das tutelas, sejam de que tipo for. Queremos também estancar a extinção de etnias, de línguas e de nossas culturas, que continua no País. Ao mesmo tempo queremos nos integrar e influir nas decisões políticas, queremos valorizar as nossas diferenças.

Como fica a relação com a Funai nesse contexto novo?

É preciso repensar o papel da Funai. Ela teve uma atuação extremamente importante na defesa dos povos indígenas e isso tem de ser reconhecido. A Funai ainda tem muito a oferecer em matéria de fiscalização e proteção de áreas indígenas, um dever do Estado previsto na Constituição. Mas não pode ser a eterna solução protetora e paternalista.

É possível unir em torno de causas comuns tantas etnias e interesses divergentes?

A bandeira da defesa ambiental é a principal causa que nos une. Sem o meio ambiente preservado, nenhuma cultura indígena sobreviverá. Teremos combate firme e propostas para conter a poluição dos rios e devastação ecológica no entorno das reservas, como acontece ao longo do Rio Xingu.

O que o Brasil pode ganhar com esse protagonismo indígena?

Uma proposta interessante já definida na CNPI (Comissão Nacional de Política Indigenista) é construir 150 pontos de cultura indígena no País, comandados por etnias regionais. O governo dará a infraestrutura e recursos para manutenção, mas haverá uma contrapartida à altura. Boa parte dos pontos fica ao longo da fronteira com os países vizinhos. Seremos guardiães dessa imensa fronteira com eficiência, orgulho e satisfação. Estamos mais capacitados, porque conhecemos o ambiente como ninguém.