Título: Sistema financeiro e concorrência
Autor: Campilongo, Celso Fernandes
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2009, Espaço aberto, p. A2

Está em curso, no Superior Tribunal de Justiça, julgamento de relevância para a economia. Trata-se da controvertida e polêmica questão da competência - Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ou Banco Central? - para apreciar comportamento concorrencial de instituições financeiras. Envolve setor estratégico da economia.

É certo que, em matéria concorrencial, bancos são diferentes. Se o concorrente de fabricantes de bebidas ou salsichas falir, provavelmente os rivais festejarão. Não é assim entre bancos. O boato sobre instituição financeira comprometida tem impacto negativo sobre todo o sistema. É o "risco sistêmico". Além disso, diferentemente de outros mercados, pelas necessárias interações de agentes do sistema bancário, os concorrentes formam rede empresarial que, inevitavelmente, troca informações. Tudo torna o sistema financeiro especialíssimo.

A crise mundial de 2008 confirma que o sistema financeiro ocupa o centro da economia moderna. Expansão e retração do crédito, taxa de juros, valorização da moeda e câmbio, ou seja, aspectos decisivos do sistema econômico dependem diretamente da organização e regulação dos bancos. Assim, regular e fiscalizar o sistema financeiro é tarefa prioritária e reservada, internacionalmente, aos bancos centrais. Nada disso autoriza imaginar que o sistema financeiro possa ter imunidades em relação ao sistema jurídico.

A ordem econômica tem seu núcleo no sistema financeiro e nos bancos centrais.

A ordem jurídica do mercado, por seu turno, assenta-se em dois ramos: direito do consumidor e direito da concorrência. É espantoso que, entre nós, com sistema financeiro tão moderno, os bancos relutem em reconhecer a legitimidade de ferramentas jurídicas que só expandiriam competitividade e produtividade.

Há quem considere, ao lado de outros fatores, que o oligopólio dos grandes bancos e o baixo grau de concorrência no setor causariam as altas taxas de juros praticadas no País. É duvidoso que seja assim, por dois motivos:

Apesar da convergência dos depósitos para poucos bancos, os indicadores disponíveis mostram não haver propriamente oligopólio (haveria, quando muito, "oligopólio coletivo", com a divisão entre os líderes e vários operadores);

especialistas apontam outros fatores estruturais responsáveis pela questão (mais um motivo para não se temer controle antitruste).

Seria imprudente dizer que existe colusão no sistema financeiro. Não se trata, porém, de mercado de "concorrência perfeita". Também não é mercado facilmente contestável. As barreiras regulatórias são elevadas. Entrar ou sair do jogo envolve dificuldades. Apesar de os bancos prestarem os mesmos serviços, a demanda é inelástica. As instituições mantêm relacionamentos próximos e interdependência. Em razão dessa interconexão, é fácil fiscalizar e punir conduta de operador "desviante".

Em resumo, existem condições - apenas em teoria - favoráveis à concertação no setor. Por isso, conveniente o controle pelo órgão especializado: o Cade.

Dois escopos sugerem que a atividade regulatória seja exclusiva do Banco Central e a função de julgamento de ofensas ao mercado seja apenas do Cade. Vejamos apenas a conveniência da atribuição do papel jurisdicional ao Cade. São motivos jurídicos e razões de política institucional que revelam a competência do Cade.

A ordem jurídica brasileira não prevê imunidade antitruste. Em princípio, observados os marcos regulatórios de cada setor, cabe apenas ao Cade julgar ofensas à concorrência na esfera administrativa. Obviamente, o Judiciário sempre terá reservado importante papel na matéria. Ao legislador, de igual modo, cabe conceber outros modelos institucionais. No entanto, à luz do direito vigente, a lei aplicável é a de Defesa da Concorrência. Inconcebível, por exemplo, que atos do advogado-geral da União ou do presidente da República transformem em letra morta a legislação vigente.

Nem se alegue que a legislação do sistema financeiro seja hierarquicamente superior à da concorrência. A lei do sistema financeiro é complementar. Foi assim recepcionada pela Constituição de 1988. Isso não significa que essa lei tenha posição superior à lei ordinária da concorrência. A matéria é de conteúdo, não de forma. Lei ordinária posterior e especializada em outro tema (concorrência) não ocupa escalão inferior ao de lei complementar que cuida de assunto diverso. Aliás, a lei do sistema financeiro é omissa e desaparelhada para:

O controle de concentrações;

o controle de condutas.

O único instrumento válido e capaz de conter o abuso de poder econômico dos bancos ou de qualquer outro setor, atualmente, é a Lei de Defesa da Concorrência. O resto é tergiversação.

Do prisma institucional, a concepção de democracia por trás do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência é a de órgão especializado na aplicação da lei. Só o Cade - com conselheiros e procurador-geral revestidos de mandatos e outras prerrogativas - pode aplicar, administrativamente, a Lei Antitruste e firmar, por exemplo, acordos de leniência, compromissos de desempenho ou de cessação de prática. Não cabe ao Cade formular políticas de governo. Por isso, o Cade é órgão de Estado: desempenha a função quase-jurisdicional de poder neutro. Deve agir como magistrado, não como administrador. Está vinculado à lei, como convém às autoridades independentes nas democracias, não ao Executivo.

É fundamental que o Judiciário ponha fim a essa incerteza e confirme a competência do Cade.

Celso Fernandes Campilongo, professor de Direito da USP e da PUC-SP, foi conselheiro do Cade e secretário executivo do Ministério da Justiça