Título: Governo corta meta para gastar mais
Autor: Otta, Lu Aiko
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2009, Economia, p. B4
Objetivo é adaptar o superávit primário a uma conjuntura de crescimento das despesas e queda da arrecadação
Para adaptar despesas que não param de crescer a uma arrecadação fraca, o governo promoveu vários cortes na meta do saldo das contas públicas em 2009. O chamado superávit primário, que é a diferença positiva entre receitas e despesas (exceto juros sobre a dívida pública) foi tão transfigurado que hoje, na prática, o governo federal pode chegar a dezembro até com um resultado primário negativo em 0,04% do PIB que ainda assim poderá dizer que cumpriu sua parte.
A conta é de Fernando Montero, economista-chefe da Convenção Corretora. Originalmente, a meta para 2009 era um superávit primário equivalente a 3,80% do Produto Interno Bruto (PIB) para todo o setor público, dos quais 2,15% do PIB deveriam ser cumpridos pelo governo federal.
Sobre esse valor, havia a possibilidade de descontar 0,5% do PIB referentes ao Projeto Piloto de Investimentos (PPI), um conjunto de projetos estratégicos. Era autorizado também descontar o Fundo Soberano, que no início do ano era algo como 0,3% do PIB.
Ou seja, a meta do setor público seria considerada cumprida, na prática, se ficasse em 3% do PIB. Levando-se em conta que os descontos recaem sobre a parcela do governo federal, a meta efetiva da União era de 1,35% do PIB.
A partir de abril, a meta do primário sofreu três modificações, que Montero chama de "metamorfose". Primeiro, a Petrobrás foi excluída do cálculo. Depois, o governo decidiu cortar a meta para adaptá-la ao quadro de crise internacional. Finalmente, foram incluídos no PPI os projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o projeto "Minha Casa, Minha Vida".
Após a transformação, a meta formal de superávit primário do setor público ficou em 2,5% do PIB. Com os descontos possíveis, ela chega a 1,06% do PIB. A parte federal, fixada em 1,4% do PIB, será considerada cumprida até com um déficit de 0,04% do PIB. O cálculo leva em conta o desconto de 0,94% do PIB referente ao PPI expandido e mais 0,5% do Fundo Soberano reestimado. "A meta do superávit primário será cumprida", disse Montero. "Só não sei qual delas." Na quinta-feira, o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, afirmou que o governo continua mirando na meta de 2,5% do PIB para o setor público e pretende alcançá-la sem lançar mão dos descontos do PPI nem do Fundo Soberano.
A afirmação foi feita por orientação do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e responde à preocupação do Banco Central em relação à trajetória dos gastos públicos, explicitada no Relatório de Inflação divulgado semana passada.
Evitando trombar com seus colegas de governo, Barbosa atacou os "terroristas" do mercado e da oposição. Para o secretário, tais avaliações negativas sobre as contas públicas teriam como objetivo forçar a alta dos juros. Ontem, Mantega deu declarações na mesma linha, falando em "objetivos espúrios". Segundo Montero, será difícil ao governo fechar o ano sem lançar mão das "brechas". Há duas semanas, o Ministério do Planejamento divulgou seu Relatório de Avaliação das contas públicas referentes ao 4º bimestre do ano, no qual a projeção de arrecadação deste ano foi reduzida em R$ 5,7 bilhões - mas, ainda assim, ficou 2,8% acima da de 2008.
Ocorre que, de janeiro a agosto, a arrecadação ficou 2,6% abaixo da do ano passado. Para chegar ao crescimento de 2,8%, a arrecadação teria de crescer "improváveis" 11,7% de setembro a dezembro, segundo calculou Montero. O mais provável, acredita, é que a meta sofra nova alteração ou então o governo recorra aos descontos - como, por exemplo, o do Fundo Soberano.
Além da "metamorfose" do resultado primário, o governo vem recorrendo a outros expedientes para dar às contas públicas uma melhor aparência. Quer, por exemplo, transferir um maior volume de depósitos judiciais em poder dos bancos para a conta única do Tesouro. Há também pressões sobre as empresas estatais, para que elas paguem mais dividendos.
Existe ainda a expectativa de que vários investimentos iniciados este ano sejam efetivamente pagos apenas nos anos seguintes, incluídos na conta dos chamados "restos a pagar". Esse expediente é normal, mas técnicos acreditam que o volume transferido para 2010 dará um salto em comparação com os anos anteriores.