Título: ''Lula vai deixar o BC segurar a inflação''
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2009, Economia, p. B4

Recuperando-se de uma cirurgia de coluna, mas já mergulhado nos números da economia brasileira, o economista Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central (BC), dá um voto de confiança ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Para Pastore, Lula é pragmático, sabe que a inflação prejudica a sua popularidade e não vai impedir o BC de fazer o seu trabalho, mesmo num ano eleitoral. "Estou assumindo que o governo tenha responsabilidade." O economista se alinha ao mercado ao prever que o surpreendente ritmo de reaquecimento da economia brasileira deve levar o BC a aumentar a Selic, a taxa básica de juros, em 2010. Pastore observa também que, como o impulso fiscal do governo que ajudou a tirar o País da crise foi realizado em grande parte com despesas permanentes, como salários e aposentadorias, não há como ajudar o BC agora, reduzindo aqueles gastos. A seguir, a entrevista:

Por que o Brasil está saindo tão rápido da crise?

A crise pegou o Brasil pela indústria. Teve uma queda um pouco menor na agricultura, mas a queda grande foi na produção industrial. No setor dos serviços, não caiu praticamente nada. Esse quadro é corroborado pelo emprego, que caiu na indústria, na agricultura, mas praticamente não caiu no setor de serviços. O grande setor da economia brasileira é o de serviços, empregando quatro vezes mais do que a indústria. Isso explica por que a recessão fez subir o desemprego no mundo inteiro, mas praticamente não fez subir o desemprego no Brasil.

E por que foi desse jeito?

Pode ter várias explicações, mas uma que ficou clara é que nós fomos pegos pelo lado dos "tradables" (produtos comercializáveis internacionalmente). A indústria é um setor muito aberto em relação ao comércio internacional, a exportação de manufaturas é mais ou menos 50% do PIB da indústria. Quando a crise jogou para baixo as exportações, jogou para baixo a produção industrial. Mas não jogou para baixo, por exemplo, setores de serviços como o setor bancário, que estava sólido, o comércio varejista, que foi rapidamente ajudado com medidas de isenção fiscal, ou as telecomunicações.

Qual o papel da política econômica em preservar o Brasil dos piores efeitos da crise?

A primeira reação que tinha de ter e teve foi a baixa agressiva de taxa de juros. O Banco Central teve de trazê-la a um nível mínimo histórico, abaixo da taxa de juros neutra. A segunda reação foi a política fiscal, em parte deliberada em reação à crise, como a isenção de impostos para automóveis, geladeiras e material de construção. Outra parte teve efeitos contracíclicos, mas já havia sido tomada antes, como aumentar salário de funcionários, benefícios da Previdência, Bolsa-Família, etc. Essas transferências, no fundo, são renda real que o governo está distribuindo a camadas da sociedade. Não é o único fator, mas explica um bom pedaço do movimento da recuperação da produção industrial de bens de consumo.

Então acabaram sendo corretos esses aumentos?

Esses são aumentos permanentes dos gastos públicos, que tiveram o lado benéfico de criar consumo e estão ajudando a sair rapidamente da crise. Mas tem outro lado: como esses aumentos de salário, de benefícios, são permanentes, você não consegue fazer uma redução gradual disso. E, assim, gera-se um episódio de aceleração da recuperação da atividade, que se soma ao estímulo que vem da política monetária.

E quais as implicações disso?

Eu mencionei que o setor de serviços está mais próximo do pleno emprego. Se você olhar para a indústria, há um hiato do produto (diferença entre o produto potencial e a produção atual) ainda muito grande. Mas, quando se olha para o PIB como um todo, no qual o setor de serviços é maior que o industrial, o hiato fica um pouco menor. Se ele é um pouco menor, isso significa que ele vai fechar um pouco mais depressa. E o risco é de que se tenha de começar o ajuste de taxa de juros antes do que o mercado julgava há três ou quatro semanas. Antes de alguns dados que saíram e mostram a velocidade com a qual a economia vem se recuperando, como o PIB do segundo trimestre e a produção industrial.

Quando deve haver o fechamento do hiato?

Há muita controvérsia, com algumas instituições prevendo já para o fim do primeiro trimestre de 2010, e outra para mais adiante. Na minha visão, independentemente da posição de cada um hoje, todos estão reconhecendo que o fechamento está um pouco mais rápido do que achavam que seria há alguns meses. O mercado está hoje avaliando como uma possibilidade mais alta que a Selic tenha de subir no começo do ano que vem. Em algum ponto do primeiro trimestre.

De quanto precisará ser a alta da Selic?

Se olhar a curva de juros, o mercado está colocando um ciclo total de 400 pontos, 450 pontos de subida de taxa de juros. Aí tem uma segunda controvérsia. Precisa tudo isso? Vai para mais de 12% a taxa de juros de novo, saindo de 8,75%? Ou vai se resolver com menos? É aí entra uma questão simples: se pudesse tirar um pedaço do estímulo fiscal, esse ajuste seria feito com taxa de juros menor. Acontece que estímulos fiscais contracíclicos, para que se possa tirá-los, têm de ser transitórios. No momento em que você não precisa mais deles, você tira. Esse estímulo fiscal tem um pedaço transitório, pequeno, que é a desoneração tributária. Mas tem a faceta permanente, do aumento das transferências. É um aumento dos gastos que você só resolveria se a inflação fosse maior para erodir o salário real dos funcionários. Porque ninguém vai politicamente chegar e baixar salário, não é? Essa componente é grande e permanente, não tem como tirar. Se não sai, se tiver de fazer o ajuste, será feito inteiro em cima de taxa de juros.

O que não é a situação ideal...

Certamente, não. Ela pode ser positiva para quem olha política de distribuição de renda, ou para quem olha o benefício eleitoral que deriva de uma estratégia como essa. Mas não é positiva como política econômica ótima, porque implica uma taxa de juro maior.

E a expansão de crédito pelos bancos públicos, não é um estímulo que poderia ser controlado?

No meu modelo, coloco o crédito e a parte fiscal juntos, como explicativos de um pedaço da recuperação dos bens de consumo. Quando se olha o crédito, os bancos privados não estão aumentando, a não ser algo em crédito ao consumo. O grosso do aumento de crédito está nos bancos oficiais. Nisso, o governo poderia voltar atrás. Se ele quiser reduzir a taxa de expansão de crédito para o setor privado, ele abre espaço para a taxa de juros ficar mais baixa. Mas não me parece que é essa a determinação do governo. Me parece que a determinação é a de continuar a expansão de crédito dos bancos oficiais.

Quanto o Brasil pode crescer sem risco inflacionário?

Depende de crescimento de produto potencial. Com a taxa de investimento ainda baixa, acho que o produto potencial vai crescer, no máximo, 4,5%. Se estamos indo para 5% de crescimento, isso apressa o fechamento do hiato do produto.

E quanto o sr. acha que o Brasil vai, de fato, crescer em 2010?

Eu já estive no 4,5%, já passei para o 4,7%. Acho que é possivelmente entre 4,5% e 5%. Tem gente com mais do que isso no mercado. Tem gente com 6%. Depende do governo. Se o governo não fizer nada, vai dar 6%. É que eu sou um otimista inveterado, e acho que o governo vai tomar cuidado, não vai deixar ir para 6%. Enfim, cada previsão dessas depende do que pensamos sobre a reação do governo. O cara que acha que cresce 6% acha que o governo vai deixar o pau comer solto e não vai fazer nada. Não acho que o governo vai deixar o pau comer solto. Ele vai ser mais comedido, se precisar subir o juro vai subir o que tiver de subir. Se der para dar uma acertada, dentro do limite do possível, na política fiscal, vai dar. E aí vai ficar com o crescimento mais na faixa do 4,5% a 5%. Estou assumindo que o governo tenha responsabilidade. E que não está olhando só para a eleição.

O que o sr. pensa da possível saída do Henrique Meirelles do BC?

O Meirelles vai decidir a vida dele, e tem todo o direito de fazer o que ele quiser - isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que, se o Brasil estiver crescendo 5%, e se tiver de subir taxa de juros, acho que o dano é muito pequeno. Raciocine um pouco com a cabeça de um homem pragmático que se chama Luiz Inácio Lula da Silva, que viveu a vida inteira como sindicalista, antes de ser presidente e político, e sabe que o custo da inflação é tirar a popularidade de qualquer governo. E que sabe também que, se você tiver desemprego aberto, a sua popularidade vai embora. Um crescimento de 4,5% ou de 5% não vai gerar desemprego. Mas, se gerar inflação, tem o custo. Se o governo elevar os juros caso tenha de fazê-lo, a Fiesp pode gritar, alguns empresários podem ficar irritados, achando que estão destruindo o País, mas o Brasil estará melhor, com uma inflação contida e com o crescimento mais próximo do PIB potencial. Acho que, no plano do puro pragmatismo, o BC estaria tão livre para subir taxa de juros como jamais foi.

Preocupa a flexibilização da meta de superávit primário de 3,3% em 2010?

Em primeiro lugar, a meta não é 3,3%. É 3,3% menos o Fundo Soberano, menos o PAC, menos isso, menos aquilo. A dinâmica da dívida pública não responde a essa definição do 3,3% menos o Fundo Soberano, etc. Porque o Fundo Soberano do qual se deduz o superávit é gasto que aumenta a dívida. O dinheiro que está se transferindo para o BNDES, para comprar empresas no exterior, está aumentando a dívida. O que se está deduzindo com o PAC - e não quero dizer que o PAC não seja uma coisa boa - está aumentando a dívida. Se a política fiscal é mais expansionista, se vão trabalhar com uma taxa real de juros mais alta, vai haver a necessidade de um superávit primário um pouco maior. Quer dizer, é preciso prestar atenção e se adaptar, e acho que possivelmente o governo está prestando atenção.

Pode haver consequências negativas da redução do superávit?

O temor de não sustentabilidade da dívida pública, que existia no começo do governo Lula, caiu a um mínimo. Isso ocorre em parte porque o Brasil está crescendo. Se o País crescer pouco, cresce 4,5%. Com isso, dá para ter até um superávit de 1,6% do PIB que estabiliza a relação dívida/PIB. Não há risco de o mercado achar que o Brasil vai entrar em "default", fazendo um superávit primário menor. Esse risco desapareceu, o Brasil virou grau de investimento. Não é essa a discussão que interessa, mas sim se estamos fazendo o uso adequado das políticas monetária e fiscal para determinar o melhor balanço de crescimento do ponto de vista do impulso que você gera para o setor privado poder investir, ou do impulso que gera para o setor governamental crescer.

Como o sr. vê as contas externas?

O déficit na conta corrente este ano é muito pequeno, mas vai crescer bem no próximo. O BC, depois de hesitar muito, nesse último relatório de inflação já projeta um déficit na conta corrente para o ano que vem de 1,8% do PIB. Não é enorme, é financiável, porque você pode ter e deve ter fluxos de capital para financiar um déficit desse tamanho. Em primeiro lugar, o Brasil vai crescer mais do que o resto do mundo. Se ficar no intervalo mais baixo das projeções, temos de 4,5% a 5% em 2010 - é mais que os Estados Unidos, é mais que a Europa, é mais do que qualquer país latino-americano. O Brasil mudou muito a sua corrente de comércio, estamos muito mais integrados na Ásia, e a Ásia está crescendo muito mais depressa do que os Estados Unidos e as Américas. Quando se tem isso e um mercado interno deste tamanho, com sistema bancário sólido, com condições macroeconômicas estáveis, você atrai investimento estrangeiro direto, atrai portfólio de bolsa, tem fluxos de capitais que financiam facilmente o déficit em conta corrente de 1,8%. Agora, para que esse dinheiro entre, o mercado tem de perceber que esse é um crescimento sustentável, que não há nada artificial aqui dentro.

O que o sr. quer dizer com isso?

Suponha que nós podemos crescer 4,5% a 5%, mas o governo resolve crescer 6% para tentar ganhar uma eleição. Para crescer 6%, começa a exagerar no gasto público e - isto é puramente hipotético - põe o BC numa camisa de força, na qual ele é impedido de subir a taxa de juros, e deixa a inflação crescer temporariamente. Numa situação dessas, o mercado certamente perceberá que o crescimento é artificial. E o fluxo de capital não entra, e nesse caso deprecia o câmbio e tem inflação. Agora, para evitar correr o risco de deixar o crescimento ir para 6%, pode-se subir um pouco a taxa de juros, cortar um pouco o gasto público, trazer o crescimento de volta para 4,5% a 5%, evitando o custo inflacionário da depreciação cambial e financiando o déficit na conta corrente sem nenhum problema, com o câmbio de equilíbrio que tiver de ter. Nessas circunstâncias, que considero mais prováveis - porque acho que o governo vai ter juízo - penso que a tendência do câmbio é a de ficar estável, ou com uma pequena valorização. Mais para estável do que para pequena valorização.