Título: Nem continuísmo nem golpismo
Autor: Mercadante, Aloizio
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/10/2009, Espaço aberto, p. A2

No plano internacional ninguém tem dúvida: o que aconteceu em Honduras foi um golpe militar clássico contra um governo legitimamente constituído. A Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU) e o Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) manifestaram-se, por unanimidade, pela dura condenação do governo golpista de Tegucigalpa. A OEA, aliás, já suspendeu Honduras de sua organização com base na Carta Democrática Interamericana. A União Europeia, a Unasul, e o Mercosul, para citar apenas alguns atores internacionais relevantes, também condenaram o golpe. Nenhum governo democrático reconhece o regime de Tegucigalpa e todos condenam o cerco à nossa embaixada.

Entretanto, no plano interno, há aqueles que ainda tentam justificar o injustificável, pondo em dúvida o golpe e atacando a correta posição no Brasil e da comunidade internacional no episódio. Além da óbvia motivação política em atacar um governo de grande popularidade, o que move esses críticos é também um equívoco monumental: confundem a imprescindível condenação do golpe com um apoio aos desmandos do governo Zelaya.

Ora, Manuel Zelaya, um político oriundo de família tradicional e conservadora, eleito pelo histórico Partido Liberal, cometeu erros graves. A sua aproximação a Hugo Chávez e o consequente ingresso de Honduras na Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), motivado pela substancial ajuda financeira que o regime da Venezuela concedeu a Tegucigalpa, fizeram-no tomar atitudes temerárias e inconsistentes. A sua teimosia em implantar uma "quarta urna" nas eleições hondurenhas, na qual se votaria pela possibilidade de convocação de uma Assembleia Constituinte, ameaçou a ordem constitucional de Honduras, que tem como cláusula pétrea a proibição de reeleições.

Assim, Zelaya merecia ter sido submetido a julgamento na Suprema Corte de Honduras. Mas não foi isso o que aconteceu. Entre a apresentação da denúncia contra Zelaya pelo fiscal general e a emissão da sentença transcorreram menos de 13 horas. Por mais célere e eficiente que seja a Corte Constitucional hondurenha, é fácil constatar que a Zelaya foi negado o devido processo e o direito à defesa. No dia do golpe, Zelaya foi retirado, sob a mira de armas de grosso calibre e ainda de pijamas, do palácio presidencial, sem que lhe tivesse sido apresentado qualquer documento legal. Ele foi banido do país, o que é vedado pelo artigo 102 da Constituição de Honduras. Partidários de Zelaya argumentam que a célere sentença da Suprema Corte foi expedida posteriormente ao golpe. No Congresso, convocado com urgência na mesma data do golpe, foi lida uma carta forjada de renúncia de Zelaya.

Portanto, não houve deposição legal e constitucional de Zelaya. Houve um golpe disfarçado por um opaco e quebradiço verniz legal. Essa é a questão.

Mas o maior equívoco desses críticos tange à participação do Brasil no episódio. O Brasil, embora tenha condenado o golpe na primeira hora, nunca buscou ser um protagonista de relevo na questão hondurenha. Esse protagonismo foi acidental. Zelaya, certamente reconhecendo o novo papel que o nosso país tem no mundo, claramente explicitado agora na magnífica vitória do Rio de Janeiro na disputa pela Olimpíada de 2016, escolheu a nossa missão para se abrigar. Ora, o Brasil jamais poderia ter negado abrigo ao único presidente legítimo de Honduras. Qualquer outro governo democrático e responsável teria feito a mesma coisa.

Ao assumir, mesmo que acidentalmente, protagonismo decisivo em Honduras, o Brasil expressa o consenso latino-americano e mundial sobre o tema e desempenha o papel que lhe cabe na condição de potência regional responsável. Afinal, se os países latino-americanos não conseguirem resolver seus próprios problemas, a sua diplomacia coletiva jamais poderá ter relevância. E se deixarmos que o golpe em Honduras prospere, criar-se-á um precedente muito perigoso para as frágeis democracias da região. A bola agora está com a OEA e a ONU, conforme o Brasil sempre defendeu.

Têm razão, no entanto, aqueles que afirmam que o abrigo a Zelaya e a violenta reação do governo golpista de Honduras colocaram o Brasil numa situação incômoda. Mas o Brasil, com o apoio da comunidade internacional e da ONU, vem fazendo a coisa certa: deu abrigo a Zelaya e solicitou ao secretário-geral da OEA a mediação do conflito hondurenho. Ressalte-se, ainda, que o Brasil não é obrigado a dar asilo diplomático formal a Zelaya, como quer o governo Micheletti, pois a concessão do asilo é, pela Convenção Sobre Asilo Diplomático (1954), ato unilateral soberano do país que o concede, suscitado pelo pedido do interessado. Na realidade, pelas regras internacionais, Zelaya pode ficar hospedado em nossa embaixada pelo tempo que convier.

Felizmente, o conflito de Honduras parece caminhar para o seu fim. Micheletti, que acabou de revogar o estado de sítio, já admite a volta de Zelaya, conforme o que preconizava o Plano Oscar Árias, e Zelaya agora concorda em submeter-se ao devido processo legal na Suprema Corte. Diga-se de passagem, o plano de sete pontos desse prestigiado Prêmio Nobel da Paz, que diminui consideravelmente o poder do presidente eleito de Honduras e o impede de fazer novas consultas para mudar a Constituição hondurenha, foi plenamente aceito por Zelaya. Quem o rejeitou foi Roberto Micheletti, o que motivou a volta de Zelaya ao seu país com o intuito de forçar novas negociações.

Nessa conjuntura delicada, temos de ter o claro discernimento de rejeitar tanto o populismo continuísta, que busca terceiros mandatos e nega a separação e a alternância de poder, quanto o golpismo, que afronta todos os princípios democráticos. Entre essas duas mazelas políticas da América Latina, devemos ficar, todos nós, do lado da democracia.

Aloizio Mercadante, economista e professor licenciado, senador da República (PT-SP), líder do PT no Senado, é vice-presidente do Parlamento do Mercosul