Título: Brasil credor, sem milagre
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/10/2009, Notas e informações, p. A3

Pela primeira vez o Brasil será credor do Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa posição era ocupada, tradicionalmente, apenas por economias desenvolvidas e pelas nações exportadoras de petróleo. Desta vez, quatro países de fora do clube estão na fila para reforçar o caixa da principal instituição financeira multilateral. Os Brics - Brasil, Rússia, Índia e China - dispõem-se a contribuir com o total de US$ 80 bilhões para aumentar a capacidade de empréstimos do Fundo. A contribuição brasileira poderá chegar a US$ 10 bilhões. O dinheiro será entregue de acordo com as necessidades do FMI. O mundo mudou, novas potências ganham peso na economia global e uma nova configuração de poder se desenha. Para entender como isso foi possível, vale a pena examinar o caso brasileiro.

O Brasil não se tornou capaz de emprestar ao FMI apenas por ter acumulado mais de US$ 200 bilhões em reservas cambiais. Isso aconteceu por vários fatores. Há mais de 20 anos a economia do País começou a ser passada a limpo. A agricultura se modernizou, os preços foram liberados, o mercado se abriu a partir dos anos 90, estatais foram privatizadas, a inflação endêmica foi vencida e as contas públicas tornaram-se um pouco mais ordenadas. O setor produtivo ganhou eficiência, estimulado pela competição e pela estabilidade. O setor público mudou, mas o setor privado mudou ainda mais.

Nada disso ocorreu de um dia para o outro e os efeitos dessa transformação apareceram gradualmente na produção e no comércio exterior. A manutenção da política de metas de inflação e de certos padrões fiscais e cambiais, desde os anos 90, facilitou a difusão das mudanças pelo organismo da economia brasileira.

Para manter o compromisso com a maior parte dessas políticas o presidente Lula teve de abandonar velhas bandeiras de seu partido e de resistir a pressões de aliados. Não deixou de aparelhar a administração federal nem de politizar aspectos importantes da gestão pública, mas teve o mérito de, até agora, preservar a independência de fato do Banco Central e de evitar as intervenções mais desastradas na vida econômica.

Várias deficiências nunca foram eliminadas. O sistema tributário continua travando o investimento produtivo e reduzindo a competitividade dos produtores brasileiros. Hoje, a concorrência se dá tanto no exterior quanto no mercado interno. O aumento da competição foi bom para os consumidores. Forçou a elevação da qualidade dos produtos brasileiros e contribuiu para a contenção dos preços. Mas a concorrência em condições desiguais pode impor custos excessivos à economia nacional, enfraquecendo empresas competitivas e destruindo empregos. A solução, na maior parte dos casos, não é impor barreiras aos produtores estrangeiros, mas diminuir as ineficiências da economia nacional. Podem ser problemas simples, como eliminação de uma exigência burocrática. Podem ser questões tecnicamente mais trabalhosas, como a construção de portos ou de centrais elétricas.Talvez sejam politicamente complexas, como a reforma tributária. Mas é preciso enfrentá-las. O presidente gosta de falar em planejamento e coordenação estatais. O melhor que o governo tem a fazer é cumprir a agenda da competitividade - com as necessárias mudanças na educação, na pesquisa e na produção de ciência.

A permanência dessa enorme agenda não obscurece, no entanto, alguns dados altamente positivos. A produção brasileira é hoje muito mais eficiente, em quase todos os setores, do que era até há alguns anos. Numa economia mais aberta, os empresários foram levados - e até forçados - a buscar espaço no mercado internacional. A velha conversa a respeito da opção entre mercado externo e mercado interno revelou-se uma tolice. A alimentação no Brasil nunca foi tão abundante e tão barata quanto depois da transformação do País num dos maiores exportadores agrícolas do mundo.

O Brasil credor do FMI é simplesmente isso: um país mais produtivo, menos sujeito a grandes surtos de inflação, mais aberto e com um padrão fiscal melhor do que teve durante décadas. Muitas dessas mudanças positivas dependeram de políticas condenadas por boa parte dos companheiros do presidente Lula e por ele mesmo durante muito tempo. É preciso resistir à tentação de uma recaída - que parece estar ficando forte - nos velhos padrões.