Título: A LRF não pode mudar
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/10/2009, Notas e informações, p. A2

Por meio de um esperto jogo de palavras, o projeto de lei complementar protocolado na terça-feira passada na Mesa do Senado pelo senador César Borges (PR-BA) muda pontos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O projeto - iniciativa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) endossada pelo senador baiano - permite a "flexibilização" dos limites e obrigações definidos pela LRF para a União, os Estados e os municípios. Tal "flexibilização" será igual, proporcionalmente, à redução da receita efetiva em relação à receita estimada nos orçamentos de 2009.

Tendo redigido o projeto desse modo, o senador ressaltou, na justificativa, que o objetivo não é "promover alterações na Lei de Responsabilidade Fiscal e sim flexibilizá-la para o exercício financeiro de 2009".

Mas essa justificativa encobre graves riscos. Flexibilizar, diz o dicionário, é "tornar flexível"; e flexível é "o que se pode dobrar ou curvar", "fácil de manejar, maleável". Ou seja, flexibilizar os limites da LRF é o mesmo que desrespeitá-los. O projeto restringe o desrespeito aos limites a 2009, mas a história das finanças públicas brasileiras registra que, adotada uma vez, uma brecha no rigor fiscal tende a perpetuar-se - e o próprio projeto abre caminho para isso ao permitir a extensão da "flexibilização" para 2010.

Em vigor há pouco mais de nove anos, a LRF se transformou na grande barreira para as práticas financeiras irresponsáveis dos administradores da coisa pública, que levaram a seguidas crises fiscais. Introduziu uma mudança notável nas práticas da administração pública brasileira e é reconhecida internacionalmente como um dos principais pilares da austeridade fiscal que se tornou um importante instrumento para o Brasil enfrentar a crise financeira mundial melhor do que outros países.

Exatamente pela austeridade e pelo rigor que a lei impôs, são muitas, desde sua edição, as tentativas de mudá-la, evidentemente para torná-la mais branda. No Senado tramitam mais de 10 projetos de alteração da LRF; na Câmara, são mais de 50. Um deles, que ameniza as exigências para Estados e municípios tomarem novos empréstimos, já passou pela Câmara e foi enviado ao Senado.

O do senador César Borges vem embalado pela forte pressão da CNM por mais recursos do governo federal e pelo abrandamento das regras de gestão financeira. Essa pressão já produziu alguns resultados favoráveis para os prefeitos, como a decisão do governo Lula de abrir um crédito especial para os municípios de R$ 2 bilhões, para compensar a quebra dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) - para os Estados, o Conselho Monetário Nacional aprovou o aumento de R$ 6 bilhões no limite de seu endividamento.

Nem isso satisfez os prefeitos. "Todos os municípios foram afetados pela crise, da cidade de São Paulo até o menor município de Minas Gerais", diz o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski. "A maioria, se não todos, está com as contas desequilibradas." O projeto, segundo ele, foi elaborado para dar uma cobertura legal aos prefeitos às voltas com dificuldades financeiras em razão da crise.

De fato, muitas prefeituras têm problemas. Mas não há nenhum sentido em mudar a lei para lidar com cada emergência que o País enfrente, como afirmou ao Estado o especialista em finanças públicas Raul Velloso. "Se alterarmos esse tipo de lei por conta de eventos conjunturais, depois de algum tempo não saberemos o que vale e o que não vale, e o que pode ser alterado e o que não pode. A lei não pode mudar."

Além dos limites formais para os gastos com pessoal e para o endividamento, a LRF estabelece parâmetros prudenciais que, se atingidos, obrigam os responsáveis pelos gastos a tomar medidas preventivas - suspender as contratações, por exemplo. Se essas medidas tivessem sido tomadas a tempo, muitas prefeituras que temem o descumprimento das regras da LRF não teriam chegado à situação atual.

Além disso, se tiverem excedido o limite, elas têm prazo para cortar os gastos excedentes. A própria LRF prevê que, em casos excepcionais, como o de uma quebra inesperada do PIB local ou nacional, esse prazo seja duplicado.

Em resumo, não há necessidade de mudar a lei, ainda que se diga que o objetivo é apenas "flexibilizá-la".