Título: Mercosul vacila, Coreia avança
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/10/2009, Notas e informações, p. A3
O governo da Coreia do Sul levou dois anos para negociar um acordo de livre comércio com a Comissão Europeia (UE). Os governos do Mercosul começaram a discutir com os europeus em 1995 e não chegaram a lugar nenhum. O último impasse ocorreu em 2004 e a partir daí as conversações ficaram congeladas, enquanto acordos bilaterais se multiplicavam em todo o mundo. Outros países sul-americanos participaram de vários desses entendimentos, em busca de oportunidades comerciais nos maiores mercados. O Chile é o exemplo mais notável. O acerto entre coreanos e europeus ainda será submetido à sanção dos 27 países da União Europeia e também ao Parlamento coreano. Poderá haver alguma resistência, mas, se for aprovado, será um marco. Esse acordo será o maior, pelo valor envolvido ( 76 bilhões anuais), desde a assinatura do Nafta pelos governos dos Estados Unidos, do México e do Canadá.
O projeto de liberalização comercial de coreanos e europeus é ambicioso. Se for implantado, resultará na eliminação ou redução de tarifas de 96% dos produtos europeus e 99% dos coreanos em três anos e na abolição da maioria das tarifas industriais em cinco. O secretário-geral da Associação Europeia de Construtores de Automóveis, Ivan Hodac, classifica o acordo como excessivamente vantajoso para os coreanos e defende sua rejeição pelos governos. Mas está prevista, segundo a comissária de Comércio da UE, Catherine Ashton, uma cláusula de salvaguarda para o caso de um surto de importações de carros coreanos. Além disso, a indústria da Coreia do Sul terá de aceitar os padrões ambientais seguidos pelos fabricantes europeus e isso deverá reduzir o desequilíbrio de custos.
Os funcionários e políticos da Comissão Europeia terão trabalho para vencer resistências do setor automobilístico e de algumas outras indústrias. Os temores são naturais, em vista do enorme poder de competição dos coreanos. Mas os negociadores europeus levaram em conta o potencial de ampliação de comércio para os dois lados ? um aumento de exportações de 19 bilhões para a União Europeia e de 12 bilhões para a Coreia ? e usarão esses cálculos para enfrentar os lobbies setoriais.
Os agricultores europeus estarão entre os grandes beneficiários do acordo. Ficarão livres de barreiras tarifárias para ingressar num mercado de alto poder de consumo e sem uma agricultura nacional competitiva. Com a nova concorrência europeia, os produtores brasileiros terão um obstáculo a mais para chegar aos consumidores coreanos.
Se o acordo for sancionado, os exportadores do Brasil e dos países do Mercosul perderão dos dois lados. Os industriais terão de concorrer em condições mais difíceis com os já temíveis fabricantes coreanos, no mercado europeu, e o agronegócio terá novos problemas para vender à Coreia.
As más notícias, no entanto, não se esgotam nesse acordo. A agenda europeia inclui negociações com outros países da Ásia. Isto não é novidade. Essa tendência ficou cada vez mais clara, nos últimos dois anos, com a sucessão de impasses na Rodada Doha de negociações comerciais. Com a rodada global emperrada, a busca de acordos bilaterais e birregionais seria a saída natural para os governos interessados em ampliar as oportunidades de comércio.
A agenda do Mercosul só incluiu, nos últimos anos, negociações com economias em desenvolvimento. Nenhum passo foi dado para a realização de um acordo de livre comércio com um mercado de primeira grandeza. O projeto da Alca foi liquidado em 2003-2004, principalmente por iniciativa dos governos brasileiro e argentino. As conversações com os europeus entraram em colapso porque Buenos Aires e Brasília não se entenderam quanto às concessões necessárias a um acerto com os europeus. Funcionários da União Europeia lembram esse dado quando se toca na hipótese de um retorno à negociação: antes de mais nada, os sócios do Mercosul precisam entender-se.
Neste momento, o Mercosul nem está nas prioridades da União Europeia. Também não é prioritário para a China nem para os Estados Unidos, quando se trata de livre comércio. Tudo isso entra na conta do terceiro-mundismo do Palácio do Planalto e do Itamaraty ? uma política vitoriosa, segundo o governo brasileiro.