Título: O Banco Central tem razão
Autor: Loyola, Gustavo
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2009, Economia, p. B2

Políticas anticíclicas são temporárias. Essa frase pode parecer uma platitude. Apesar disso, é necessário relembrar tal obviedade, tendo em vista as reações desarrazoadas, até mesmo na Esplanada dos Ministérios, que se seguiram à divulgação do Relatório Trimestral de Inflação pelo Banco Central (BC).

Nessa publicação, de forma sóbria e correta, o BC considerou que o risco maior para a trajetória de inflação, no médio prazo, adviria dos efeitos cumulativos e defasados do afrouxamento monetário e fiscal adotado como reação à crise externa.

Com relação à política monetária, é sobejamente conhecida a defasagem existente entre a alteração da taxa básica de juros e seus efeitos sobre preços e atividade econômica. O mesmo tipo de problema ocorre com relação à política fiscal, principalmente quando se consideram a rigidez dos gastos públicos que caracteriza o Brasil, bem como as incertezas naturais sobre a velocidade de recuperação da arrecadação de tributos nos próximos meses.

Assim, para o BC, é possível que tanto a expansão monetária quanto a fiscal ainda estejam produzindo efeitos sobre a demanda nos próximos meses, quando a utilização da capacidade produtiva já estará próxima de seu limite.

De fato, as projeções correntes otimistas sobre o comportamento do produto interno bruto (PIB) no decorrer dos próximos trimestres indicam que tal possibilidade não pode ser descartada. Nesse contexto, a reação dos mercados à publicação do relatório de inflação foi racional. Se o próprio BC enxerga existir risco inflacionário a médio prazo, isso significa, logicamente, que a probabilidade de subida dos juros teria aumentado, constatação que imediatamente fez com que se elevassem as taxas nos mercados futuros.

Assim, nem Júlio Verne, com todo o seu talento para a ficção, perceberia no citado relatório do BC ou na reação de analistas e de operadores de mercado uma forma de "terrorismo fiscal", qualquer que possa ser o significado dessa expressão.

Vale ressaltar que, mais cedo ou mais tarde, aqui e em muitos outros países, chegará o momento de reverter as políticas anticíclicas adotadas como reação à crise dos subprimes. Na Austrália, por exemplo, o processo de elevação dos juros já foi iniciado recentemente pela autoridade monetária.

A propósito, neste momento o cerne do debate econômico global é justamente sobre as chamadas "estratégias de saída", isto é, sobre as ações futuras dos bancos centrais e dos governos para a retirada dos estímulos que foram utilizados nos momentos mais críticos da crise econômica. Nesse processo há tanto o risco de retirada prematura dos estímulos quanto de sua retirada tardia. No primeiro caso, a recuperação econômica seria abortada, no segundo, as pressões inflacionárias poderiam agravar-se.

No caso brasileiro, contudo, esses dois riscos não são simétricos. Há hoje poucas dúvidas sobre a robustez da recuperação econômica, como atestam os indicadores recentemente divulgados, como o próprio comportamento francamente positivo do PIB no segundo trimestre do ano. Desse modo, parece que o maior risco é o da retirada tardia dos estímulos, o que poderia vir a ter consequências negativas sobre a inflação.

Assim sendo, é correta a avaliação de riscos apresentada pelo BC no mencionado relatório. Nos próximos meses, o que estará em questão, basicamente, é a magnitude com que se dará a reversão de sinal da política monetária, no contexto de uma política fiscal que, até o momento, segue dando sinais francamente expansionistas.

A situação ideal seria que não recaísse solitariamente sobre a política monetária a responsabilidade de evitar aquecimento excessivo da demanda, quando sinais preocupantes de riscos inflacionários emergissem. Se a política fiscal trabalhasse na direção da política monetária, a elevação das taxas de juros domésticas seria menor, o que teria efeitos benéficos sobre a economia. A melhor estratégia, aliás, é a de retirar primeiro os estímulos fiscais, deixando a alta dos juros para um momento posterior, no caso da persistência do risco inflacionário.

Entretanto, no Brasil, parece haver no momento dois obstáculos que impedem que esse tipo de ação coordenada entre os lados monetário e fiscal venha a ocorrer nos próximos meses.

O primeiro foi a má escolha feita pelo governo, que, no auge da crise, optou por uma expansão mais forte dos gastos de custeio, cuja reversão é mais difícil do que seria o caso dos gastos de investimento. O segundo é a manifesta intenção do governo de continuar, em 2010, a expandir as despesas de custeio, haja vista os diversos compromissos que estão sendo assumidos, inclusive no que diz respeito à admissão de pessoal e a reajuste de salários.

Em suma, o melhor meio de evitar ou mitigar a alta da taxa Selic nos próximos meses é a contenção dos gastos fiscais em níveis razoáveis.

De nada adiantam teorias conspiratórias ou acusações de terrorismo. Mais eficaz seria rever os rumos da política fiscal.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central do Brasil, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo .