Título: France Telecom sob pressão com onda de suicídios
Autor: Netto, Andrei
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2009, Economia, p. B11

Com 25 suicídios em 20 meses, grupo já admite que pode ter ido 'longe demais' na pressão por desempenho

Um choque de culturas e filosofias de gestão está entre as origens de um dos mais chocantes dramas trabalhistas da história da França: uma sequência de 25 suicídios ocorridos em 20 meses na mesma companhia, a ex-estatal e hoje líder de mercado France Telecom. De um lado, estão trabalhadores egressos de uma ex-empresa pública, cuja mentalidade foi forjada antes da privatização, em 2004. De outro, uma direção liberal ao extremo, contratada com o objetivo de imprimir um choque administrativo sem paralelo.

A direção da dupla Didier Lombard e Louis-Pierre Wenes impôs à France Telecom medidas que favoreceriam a competitividade, a inovação e os resultados - como as transferências constantes de pessoal, o estímulo a aposentadorias e demissões voluntárias e a fixação de prazos curtos para o alcance de metas. O efeito colateral, potencializado por um cenário de crise, foi uma onda de suicídios.

A tomada de consciência do conflito ocorreu em 14 de julho, quando um engenheiro de 48 anos, casado e pai de três filhos, enforcou-se em casa, em Marselha, tornando-se o 21º suicida no grupo em menos de 18 meses. Em sua carta da despedida, ele usou expressões como "sobrecarga de trabalho" e "gestão pelo terror" antes de sublinhar: "Eu me suicido por causa do meu trabalho na France Telecom. É a única causa."

A informação veio a público por meio de sindicatos, e a imprensa francesa, até então discreta sobre os suicídios, abriu o jogo. Desde então, quatro outras mortes se sucederam, até a última delas, quinta-feira.

Aparentemente, os suicídios não mudaram o foco da direção da empresa. Em meio à crise, Lombard, diretor-presidente do grupo, classificou os suicídios como "uma moda". No site YouTube, um vídeo no qual o executivo fala das condições de trabalho em tom jocoso acentuou a ira dos trabalhadores: "Aqueles que acham que poderão ficar nos seus sofás sem ter a tranquilidade importunada estão enganados."

REAÇÃO

A sucessão de mortes, que envolve de assalariados do call center a gestores altamente habilitados, vem movendo a opinião pública e também o governo francês. Impaciente, o Ministério do Trabalho impôs o fim temporário de transferências obrigatórias de funcionários, determinou à empresa abrir negociações sobre o estresse no ambiente de trabalho e convocou um laboratório independente para analisar as raízes do problema. Nada disso, entretanto, foi suficiente até aqui.

Nesse momento, todas as "ferramentas de controle" dos funcionários - como a empresa define sua política de recursos humanos - estão sendo questionadas. "France Telecom hoje é dinheiro, tudo pelo dinheiro. O lado humano a gente esquece", sintetizou Didier Castelain, delegado sindical do CGT.

O diagnóstico do sindicalista é o mesmo dos maiores especialistas em psicologia do trabalho da França. "Esses eventos sublinham a degradação do "estar junto" na France Telecom, o que vem desde sua privatização, quando a empresa passou a praticar uma reorganização de grande brutalidade", disse ao jornal Le Monde Christophe Dejours, psicólogo do trabalho.

Elizabeth Gregot, outra das mais respeitadas psicólogas do trabalho da França, não hesita em apontar a transição da empresa pública para a mentalidade privada como a origem da crise. "Trata-se de uma empresa que mudou de estatuto, adotando uma política de recursos humanos terrível, que inclui a pressão pela demissão", disse ao Estado. "Não é à toa que a epidemia aparece durante uma crise financeira."

Jean-Claude Delgenes, especialista em suicídios do escritório de consultoria Technologia, contratado pela France Telecom para pôr fim ao ciclo de mortes, faz diagnóstico semelhante. "Nós estamos em uma economia globalizada na qual um dos meios de manter a competitividade é incidir sobre os funcionários", afirmou, explicando os suicídios: "Eles acabam em uma lógica de reatividade permanente."

A própria France Telecom já admitiu o excesso de rigor. Stéphane Richard, novo número 2 da companhia - em substituição a Wenes, que deixou a empresa na início do mês -, disse ao Le Monde que a empresa foi "provavelmente longe demais" nas pressões por desempenho. "As políticas (de RH) causam em alguns empregados um sentimento de sufocamento, e é isso que é preciso rever", afirmou.