Título: Para além dos puxões de cabelo
Autor: Werthein, Jorge ; Abramovay, Miriam
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/10/2009, Espaço aberto, p. A2
O pacato município de Araçariguama, a 50 quilômetros da cidade de São Paulo, foi parar nas manchetes dos jornais no último dia 16 de setembro. O motivo deixou espantados os 13 mil habitantes da cidade: duas garotas se engalfinharam na porta de uma escola, enquanto a mãe de uma delas estimulava a filha a bater na colega.
A cidadela de nome quase impronunciável, ainda que ostente 90% de taxa de alfabetização, enfrenta problemas semelhantes aos de cidades maiores, como a violência entre estudantes. Há pouco mais de dois meses, em Ribeirão Preto, também no interior de São Paulo, 13 meninas com idade entre 11 e 15 anos prestaram depoimento no Ministério Público Estadual por serem suspeitas de integrar o "Bonde do Capeta", grupo de alunas da sétima série de uma escola estadual na periferia da cidade. As jovens ter-se-iam reunido para ameaçar e estapear colegas mais bem-vestidas e com notas melhores.
Têm sido cada vez mais frequentes episódios como esses, que envolvem estudantes do sexo feminino em atos de violência física, microviolências e violências simbólicas. Quando se trata de violência escolar, um ponto fundamental para compreender sua dinâmica está justamente nas relações de gênero e seus significados. Se o ensino no Brasil esteve historicamente dominado por estudantes do sexo masculino, a proporção de mulheres no meio estudantil vem crescendo a partir do século 20 e, nos últimos anos, chegou a ultrapassar o número de homens. Não é de espantar, portanto, que elas, agora em maior número, comecem a figurar nas estatísticas também como perpetradoras de atos de violência.
Os grupos constroem códigos de diferenciação nos seus processos de identidade e sair do anonimato, ter visibilidade numa sociedade em que tudo é um espetáculo, traz visibilidade e empoderamento, o que inclui interações violentas, transgressões. As análises das relações entre masculinidade e violência demonstram que valores como "controle" e "rivalidade" são atributos socialmente entendidos como próprios dos homens. O masculino pode afirmar-se ao encarnar a posição de poder, desafiando a autoridade estabelecida e atribuindo a si mesmo a figura de representante de uma lei simbólica. Ser destemido e valente corresponde, portanto, a uma representação corrente do masculino, valorizada socialmente. E a relação do feminino com as diversas violências existentes demonstra que as mulheres não são "essencialmente pacíficas" e os homens, obrigatoriamente violentos.
Embora as estatísticas indiquem que ainda são os homens, principalmente os jovens, os que mais matam e morrem em decorrência da violência nas cidades brasileiras, as condutas violentas femininas também merecem atenção. As violências de autoria feminina não tendem a ser, porém, interpretadas nos mesmos termos das cometidas pelos homens. Se as representações hegemônicas sobre as mulheres historicamente as localizaram no território da passividade, da fragilidade e da candura, a participação delas no registro da violência chega a ser tratada como um desvio e mesmo uma atitude antinatural.
Apesar de as violências femininas de um modo geral causarem espanto, nota-se que a marca de geração tende a ser um ponto fundamental no tipo de percepção que se tem sobre essas agressões. O recente estudo Revelando tramas, descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas, lançado há poucos meses sob os auspícios da Secretaria de Educação do Distrito Federal e da Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), traz dados interessantes a esse respeito. Ele mostra, por exemplo, que 49,5% do segmento estudantil expõe a percepção de que, apesar das brigas de meninas, os meninos seriam os mais violentos. Já os professores apresentam ponto de vista que tende a recusar a existência de diferenciação de gênero - 51,2% afirmaram não haver diferença nesse caso.
Enquanto as violências masculinas parecem ser entendidas como fruto de uma sociabilidade agressiva inata ou disputas espetaculares em torno de posições de autoridade, as agressões de meninas são frequentemente percebidas como derivadas de motivações fúteis: inveja, ciúme e fofoca. Outra situação recorrente seriam as disputas por namorados. As formas de brigar também aparecem como tipicamente femininas: tapas, arranhões ou puxões de cabelo. No entanto, há depoimentos que atestam o fato de atualmente as adolescentes estarem cada vez mais se aproximando da maneira masculina de agredir. O leque de técnicas de agressão corporal se estaria ampliando, assim como os próprios acessórios utilizados, armas de fogo entre eles.
Diante de semelhante diagnóstico, alguns talvez temam pelo futuro das escolas ou de seus filhos nessas escolas. Está, no entanto, justamente nas escolas grande parte da solução para o problema da violência entre estudantes. Afinal, as instituições de ensino têm papel crucial no estabelecimento de práticas não-discriminatórias, permitindo que as habilidades sejam trabalhadas em todo o seu potencial, sem que modelos arcaicos de gênero restrinjam o leque de possibilidades de meninos e meninas, ao mesmo tempo que salientam as melhores características em cada um.
A escola pode, ainda, comprometer-se com a desconstrução de um imaginário social que associa diversas violências às noções de virilidade e masculinidade, evitando que essa simbologia viril imprima às agressões o caráter de afirmação de identidade tanto de garotos quanto de garotas. É preciso, enfim, oferecer aos jovens estudantes formas alternativas de reconhecimento social. Afinal, uma vez no mercado de trabalho, não poderão resolver conflitos na base de socos, pontapés ou puxões de cabelo.
Miriam Abramovay, socióloga, pesquisadora, é coordenadora da pesquisa Convivência Escolar e Violências nas Escolas da Ritla, entre outras atividades Jorge Werthein, doutor em Educação pela Stanford University, ex-representante da Unesco no Brasil, é vice-presidente da Sangari Brasil