Título: Valorização do real deixa BC na defensiva
Autor: Landim, Raquel
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/10/2009, Economia, p. B4

Tributação do capital externo foi decisão política de Mantega e Lula

A taxação do capital estrangeiro com IOF de 2%, adotada pelo ministro Guido Mantega no início da semana, com autorização do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, revelou o quanto o Planalto e a Fazenda estão dispostos, neste e no próximo ano - tempos eleitorais -, a encurralar o Banco Central (BC) nas decisões de política econômica. Tecnicamente, a medida foi considerada uma "decisão fiscal", da área de Mantega, mas o certo é que, se dependesse só da vontade do presidente do BC, Henrique Meirelles, a taxação não seria ressuscitada - ele participou ativamente da discussão sobre o assunto.

Há duas semanas, desde que a Agência Estado soube da iminência da tributação da entrada do capital externo e antecipou a decisão em manchete da edição do Estado de sexta-feira retrasada, que a reportagem vem rastreando os argumentos de todos os personagens da equipe econômica envolvidos no debate, além dos interlocutores externos que foram consultados. Em síntese, depois da política fiscal expansionista, que levou à redução da meta do superávit primário das contas do setor público em 2009, o debate sobre o problema da contínua valorização do real ante o dólar botou o BC na defensiva.

PREVISIBILIDADE

A decisão técnica da Fazenda foi precedida da decisão política do Planalto de rejeitar a "postura de braços cruzados" do BC. Mesmo admitindo que o IOF sobre o capital estrangeiro tem pouco efeito sobre o câmbio, Lula e Mantega optaram pela taxação para "avisar" o mercado de que o governo adotará medidas que ajudem a conter bolhas que possam vir a se transformar em "movimentos especulativos incontroláveis". Como disse ao Estado uma fonte do Planalto, "o governo precisava quebrar a previsibilidade do BC e mostrar que vai mandar e ser imprevisível sempre que isso for necessário".

Uma diferença básica apareceu no debate interno entre Mantega e Meirelles: a Fazenda avaliava que os efeitos futuros do aviso preventivo compensavam o eventual desgaste imposto pelo lobby da Bolsa; para o BC, trata-se de um tiro desproporcional ao tamanho da empreitada - conter a valorização do real ante o dólar -, no momento em que a moeda americana despenca mundo afora.

O BC não se vê como um administrador de braços cruzados diante de um perigo. Para a autoridade monetária, o dólar a caminho da paridade com o real só é um problema para os exportadores, que não devem ser ajudados com um "câmbio artificial". Nos bastidores, sempre que o governo discute o assunto, o foco do BC volta-se para sugestões como a desoneração da folha de pagamento das empresas e o fim da cobrança do IOF nas operações de crédito, por exemplo. Isso é o "essencial", na visão do BC, por oposição à "medida acessória" da taxação do capital externo. Acessória por inocuidade, pois os técnicos do BC até consideram "civilizado" o IOF de 2% - pior seria se o governo aplicasse um tributo na casa dos 20% ou 30% na saída, o que caracterizaria um "controle de capitais".

EXPANSIONISMO

Incomoda ao BC, como já revelou em atas do Copom e relatórios de inflação, o expansionismo fiscal do governo Lula, que não tem a ver com as medidas adotadas para combater a crise econômica - a começar, por exemplo, pelo brutal crescimento da folha de pagamento. Em setembro de 2008, os gastos com pessoal (salários e aposentadorias) acumulados em 12 meses cresceram 3,7% em termos reais, saltando para um ritmo de 13,4% em setembro de 2009. É por isso que o governo não encara hoje um movimento de desoneração da folha. Para atenuar o novo embate do BC com a Fazenda, Mantega anda prometendo a todos os interlocutores - e disse isso a Meirelles - que o governo vai cumprir religiosamente o reduzido superávit previsto para este ano, de 2,5% do PIB - e 3,3% em 2010.

Na essência, o Planalto considera corretas as propostas do BC, mas, em aliança com a Fazenda, avaliou que, diante da "chuva de dólares" que tende a desabar sobre o País e do juro básico ainda alto (Selic de 8,75%), era preciso sinalizar que a equipe econômica está atenta às diferenças entre investimento produtivo, especulação e ataque à moeda.

Pelo lado da cotação do câmbio, Planalto e BC são aliados na visão de que o governo não deve perseguir um câmbio ideal para exportação. Em janeiro de 2008, oito meses antes da crise financeira estourar nos EUA, o câmbio estava na casa do R$ 1,50 e a balança seguia de vento em popa. A diferença é que o Brasil pode, pela atração de negócios e mais os megainvestimentos da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, receber investimentos da ordem de US$ 500 bilhões.

FILIAÇÃO AO PMDB

A ideia de que o BC se fragilizou por causa da filiação do seu presidente ao PMDB, podendo disputar as eleições do próximo ano por Goiás, é posta na roda das discussões internas, mas Planalto, mercado e a própria Fazenda consideram isso um "ruído". Quando muito, a perspectiva de saída de Meirelles do BC e o processo de escolha do substituto incentivam a Fazenda a expor com mais vigor a vontade de influir na opção por medidas mais agressivas para conter a valorização do real, partindo do pressuposto de que o BC resiste a ser mais intervencionista e a comprar um volume maior do excesso de dólares que entram no País.

Em resposta a essa resistência, Mantega tem reforçado com Lula a necessidade de liberar a aplicação de recursos do Fundo Soberano do Brasil (FSB) para a compra de dólares no mercado à vista, com poder de fogo para influir na cotação da moeda. Mas, por um motivo prático, esse é um movimento que não assusta o BC: Mantega estará limitado pela capacidade orçamentária, enquanto, para o BC, a quantidade de compra de dólares nunca terá limite. O presidente autorizou essas operações, já previstas na lei do Fundo Soberano (11.887/2008) e sem a oposição de Meirelles, por meio de um artigo incluído na MP 452 - não entrou em vigor porque a MP caducou, mas a decisão política está tomada.

Foram esses movimentos de encurralamento que levaram o BC a divulgar uma nota na quarta-feira à noite dizendo que as decisões tomadas pela Fazenda "não implicam mudança no regime cambial". Disse mais: "A taxa de câmbio continua flutuando e sendo determinada pelas forças do mercado". O BC tem lembrado, também, que a medida foi a ressurreição de algo que existia - é verdade, mas com duas diferenças: além da alíquota ser maior, de 2% (era de 1,5%), a taxação, que era restrita à renda fixa, agora atinge a renda variável.

Por último, mas não menos relevante, o BC, na estável gestão de Meirelles, já fez 15 "trocas normais" de diretores. A saída do diretor de Política Monetária, Mário Torós, que deve ocorrer até o fim deste ano, pode ser mais uma "troca normal", mas a substituição do presidente do BC, se ocorrer, não pode ser vista como um fato corriqueiro da República - afinal, terá de ser substituído por alguém que sirva de contraponto a Mantega.