Título: Chávez quer um Mercosul bolivariano
Autor: Azambuja, Marcos
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2009, Nacional, p. A14

Presença do presidente venezuelano no bloco deve dificultar integração de países-membros, diz o diplomata aposentado

Roldão Arruda

Quem é: Marcos Azambuja

Diplomata aposentado. Foi embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris e ex-secretário-geral do Itamaraty. Atualmente é vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais

A presença de Hugo Chávez no Mercosul deve dificultar o caminho de integração comercial dos países-membros - que já é difícil e cheio de falhas. De acordo com o embaixador Marcos Azambuja, vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Chávez é o tipo de sócio que se junta ao clube não para jogar de acordo com as regras já estabelecidas pelos outros sócios, mas sim para refundar o próprio clube. Ele já fez isso no Pacto Andino e pode reproduzir o mesmo tipo de comportamento no Mercosul.

Como o senhor viu a entrada da Venezuela no Mercosul?

Eu teria preferido o aprofundamento e o aperfeiçoamento do Mercosul com seus parceiros atuais, com o foco voltado para o cone sul. O Mercosul precisa mais de aperfeiçoamento do que expansão.

O senhor tem restrições específicas à Venezuela?

A Venezuela não é objetável, ou seja, não há reservas em relação ao país. Trata-se de um sócio desejável, um país amigo e vizinho. Mas ela tem um presidente com possibilidade de ser um presidente eterno. O fato central, em termos de acordos comerciais, é que Chávez tem um precedente preocupante: ele causou grande dano ao Pacto Andino. Isso ocorreu e vai continuar ocorrendo porque ele nunca quer aderir ao que existe, mas sim refundar. Não é um novo sócio que se soma aos outros, mas um parceiro que quer alterar as regras do jogo.

O ex-embaixador Rubens Ricupero disse ao Estado que a entrada da Venezuela ocorreu antes que fossem definidos os termos da adesão.

Concordo. Teria sido melhor se o Senado tivesse segurado mais a decisão. Até que fosse adotada uma resolução na qual o Brasil deixasse perfeitamente claros os termos da adesão. O melhor agora seria que o plenário do Senado fizesse isso. Mesmo que sua decisão não tivesse valor jurídico. Se não fizer, vai haver um momento em que seremos obrigados a retomar o debate, explicitando que a Venezuela foi aceita num jogo que já tem regras e cujo objetivo é a integração por meio da negociação - e não um instrumento contra os Estados Unidos, contra Israel, ou qualquer outro país.

O senhor disse há pouco que seria melhor aperfeiçoar o Mercosul do que expandi-lo. Por quê?

Nós caminhamos depressa demais com o Mercosul. Tentamos uma integração que foi além de nossas pernas e hoje estamos diante de um processo associativo imperfeito, cheio de brechas. Tentamos uma ambiciosa integração aduaneira e não chegamos lá. Há muito dever de casa a fazer antes de se pensar em ampliação.

A decisão foi mais política do que técnica?

Chávez já deixou claro que seus sentimentos a respeito dessa associação comercial não são os mesmos que inspiram os outros sócios. Ele quer um outro tipo de entidade. É um direito dele, mas não é isso que temos nem queremos. O Brasil não quer ser instrumento de ninguém. O Brasil quer usar o Mercosul, mesmo com suas imperfeições, para fortalecer um processo de intercâmbio, trocas, negociações. O Brasil não quer rever o mundo, mas se colocar melhor dentro dele. O Chávez quer um Mercosul bolivariano.

Na América Latina, Chávez não é o único com ideias de refundação. Podemos citar Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador.

Estamos falando de países de grande pobreza, grandes assimetrias, rupturas internas. Eu compreendo a necessidade de correção. O problema é que esse tipo de atitude não é a mesma que leva à integração comercial: ela ocorre quando esses problemas estão resolvidos e um Estado fala com o outro, com certa homogeneidade de pensamento. São países que, em vez de pensar em se associar, precisam se redefinir como países.

Há democracia na Venezuela?

A Venezuela procura reduzir o conjunto de fatores que definem uma democracia a um de seus ingredientes, que é a vontade majoritária. Não tenho dúvida de que ela é o elemento central da democracia, mas é preciso levar em conta também o respeito à minoria, as regras do jogo, as leis. Eles usam muito os plebiscitos, referendos para alterar as regras. Parecem preferir a chamada democracia direta, sem passar pelos parlamentos, pelos tribunais, quando já se provou que a democracia tem de ser instrumentada por leis, entidades, parlamentos. Ou então cairemos no cesarismo, no bonapartismo, no uso momentâneo da popularidade para desconstruir o Estado.

O Mercosul é o único caminho do Brasil no jogo global?

O Brasil também pode jogar com Unasul, OEA, G8 ampliado, o G20. A vocação do Brasil é ter associações múltiplas.

Os interesses de empresas brasileiras na Venezuela contribuíram para acelerar a decisão?

Sem dúvida - e isso é legítimo. Não se trata de colocar princípios acima de interesses, mas de conciliar princípios e interesses.