Título: Bento XVI é um liberal em segredo?
Autor: Gibson, David
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2009, Vida&, p. A29

Quando o cardeal Joseph Ratzinger foi eleito papa, em abril de 2005, o mundo todo se alegrou - ou se recolheu - ao saber que os cardeais tinham se decidido por um homem ainda mais conservador do que João Paulo II. Os que não se entusiasmaram tentaram se consolar com o fato de que Ratzinger estava com 78 anos e ele próprio previa um papado curto, de transição.

E houve uma transição. Em menos de cinco anos, Bento XVI mostrou-se um dirigente disposto a reformar o catolicismo, calma mas resolutamente. E o que mais surpreende são os meios notoriamente liberais que têm usado e que podem levar o pontífice a lugares onde não era sua intenção chegar.

Um exemplo foi o anúncio (que pegou de surpresa até o líder da Comunhão Anglicana Mundial, Rowan Williams) de que o papa está criando uma nova "igreja dentro da igreja", de modo que os anglicanos poderão se unir aos católicos sem renunciar a tradições. A finalidade é uma conciliação com os anglicanos tradicionalistas e os episcopalianos dos Estados Unidos, irritados com a aceitação do clero declaradamente gay na América do Norte e das bispas na Igreja da Inglaterra.

Com base nessa medida sem precedentes, bispos, dioceses e paróquias podem se unir aos católicos, os padres casados podem trazer suas esposas e continuar padres. O cardeal William Levada, chefe Congregação para a Doutrina da Fé e figura chave nas negociações secretas com os anglicanos que precederam a medida, disse que entre 20 e 30 bispos anglicanos pediram para se juntar ao Vaticano.

Mas há incerteza. Como salientou o padre Thomas Reese, do Centro de Teologia Woodstock, em Washington, permitir um rito anglicano separado na Igreja Católica pode mudar a visão católica do celibato e da liturgia como pode mudar a visão da Comunhão Anglicana.

O que essa medida confirma é que mudança é o mantra, mesmo que paradoxal, do papado de Bento XVI. Outra decisão recente, que pode ter um impacto profundo, foi o início de um diálogo entre o Vaticano e a liderança de uma seita tradicionalista que rompeu com Roma em 1988. Para muitos, uma reaproximação poderá exigir de Bento XVI uma reinterpretação crítica do Concílio Vaticano 2º e suas reformas modernizadoras. Em 1988, sob a direção do então cardeal Ratzinger, o Vaticano tinha estabelecido uma disposição que permitiu a um grupo cismático, liderado pelo arcebispo rebelde Marcel Lefebvre, continuar usando a velha missa em latim e outros ritos anteriores ao concílio, desde que continuasse unido a Roma.

Mas Ratzinger sempre quis trazer de volta para Roma os cismáticos remanescentes e, como papa, fez concessões extraordinárias para conseguir isso. A principal inovação foi sua ordem pessoal, em 2007, permitindo que a missa em latim fosse celebrada em qualquer parte do mundo. Pela primeira vez na história do catolicismo, isso deu origem a dois ritos paralelos na igreja do Ocidente. Agora, com a regra para os anglicanos, poderemos ter três versões da missa católica. Como diz Thomas Reese, "se houver três versões da missa, ficará mais difícil se argumentar contra".

Até agora, o papado de Bento XVI tem sido movimentado e com mudanças constantes, um tipo de dinâmica que sempre resultou em críticas aos católicos liberais - ou protestantes. No caso do papa, esse liberalismo atende a uma agenda conservadora. Mas seu ativismo não deve surpreender: como crítico severo das reformas do Vaticano 2º, Ratzinger há muito insiste numa "reforma da reforma".

Naturalmente, uma "reforma reformada" não significa um retorno ao passado. Na verdade, as reformas de Bento XVI estão criando algo inteiramente novo. Por exemplo, quando restaurou a velha missa em latim, também ressuscitou o uso da velha Oração da Sexta-Feira Santa, que fala da "cegueira" dos judeus e pede a sua conversão. Essa oração sempre foi uma incitação aos pogroms contra judeus, de modo que seu restabelecimento chocou líderes judaicos. Após meses de protestos, Bento XVI concordou em modificar a linguagem; essa e outras mudanças tornaram a missa "tradicional" mais um híbrido do que uma restauração.

Mais importante, com a reconciliação com os anglicanos, o papa mostrou que os critérios para o que significa ser católico estão mudando. O Vaticano está dizendo que as divergências sobre padres gays e bispas são as principais questões que dividem católicos e anglicanos, mais do que os sacramentos.

Isso é revolucionário e inesperado de um papa como Bento XVI. E pode corroborar a opinião, que ele e outros conservadores rejeitam, de que todos os cristãos são praticamente os mesmos quando se trata de crença e que as diferenças são discussões sobre detalhes.

E essa pode ser a ironia final. Não obstante todo o alvoroço em torno das medidas da semana passada, as inovações de Bento XVI podem ter se acercado só ligeiramente de temas difíceis, ou seja, as diferenças teológicas que os anglicanos dizem tê-los impedido de se converterem. "Se acreditasse em tudo que a Igreja Católica Romana prega como dogma, eu seria um católico e isso há anos", afirmou o bispo William Ilgenfritz, da Igreja Anglicana recentemente formada na América do Norte.

"Não quero ser um católico", disse o bispo Martyn Minns, líder de um grupo de episcopalianos. "Houve uma reforma, você lembra?" Em resumo, pode ser prematuro declarar o fim da reforma - ou tentar imaginar qual lado vai prevalecer.

*David Gibson cobre assuntos de religião