Título: Câmbio é problema na saída da crise
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2009, Economia, p. B6

Desvalorização do dólar, com yuan chinês atrelado, é desafio para países e regiões em que a moeda é flutuante

Na saída da maior crise econômica global em muitas décadas, o mundo está de novo às voltas com desequilíbrios e falta de coordenação entre as potências que lembram o panorama anterior à turbulência. A decisão da China, em meados de 2008, de fixar de novo a taxa de câmbio em relação ao dólar, depois de deixá-la passar por um lento e gradual processo de valorização a partir de 2005, está tornando a grande desvalorização da moeda americana um processo de muito mais impacto para países e regiões que deixam suas moedas flutuar, como o Brasil e a zona do euro.

Como diz Edward Amadeo, economista do Gávea Investimentos, "estamos sendo desproporcionalmente afetados". A razão, ele nota, é que, além de ter se valorizado 30% ante o dólar desde dezembro, o real também ganha força em relação ao yuan chinês e a outras moedas de países asiáticos, que tentam não perder competitividade frente ao seu vizinho gigante.

Dessa forma, alguns dos países que saíram melhores da crise, como o Brasil, estão sendo vítimas do próprio sucesso, com uma inundação de capitais que tende a sobrevalorizar o câmbio e pode prejudicar a competitividade de produtos industriais nos mercados interno e externo. A atratividade do Brasil está não somente nas perspectivas de crescimento e lucros bem melhores do que as dos países ricos, mas é causada também pela diferencial de juros em relação ao atual nível baixíssimo das taxas do mundo desenvolvido.

Os sinais de que o pior já passou na economia global e o mundo entra na era pós-crise crescem a cada dia. Com a alta do juro básico da Noruega esta semana, de 1,25% para 1,5%, já são três países, incluindo Israel e Austrália, que iniciaram um ciclo de aperto monetário após as taxas terem caído a níveis recordes. Os juros futuros apontam que o mesmo pode ocorrer em 2010 em vários outros países e regiões, como o Brasil, Estados Unidos, zona do euro e Índia.

Segundo Amadeo, que acompanha a economia global no Gávea, "ainda não há sinal de inflação no mundo". Assim, o início do ciclo de aperto monetário em alguns países e a indicação de que o movimento vai se disseminar em 2010 derivam do fato de que os bancos centrais, diante do pânico do auge da turbulência, jogaram suas taxas de juros básicas a níveis muito abaixo do que é considerado neutro - isto é, aquele que mantém a economia crescendo no seu ritmo potencial, sem estimular nem desestimular a demanda.

Agora, levando em consideração a defasagem de seis a nove meses entre as decisões de política monetária e seus efeitos na economia real, os BCs começam o movimento de volta dos juros básicos na direção do nível neutro, onde eles deveriam se encontrar quando as economias retomarem seu ritmo normal de crescimento.

A retomada global, porém, é muito desigual e está desenhando um novo mapa do poder econômico no mundo. As economias ricas - Estados Unidos, Europa e Japão -, as mais afetadas pelo estouro da bolha de crédito, derivada do mercado imobiliário americano, devem passar por um período longo de baixo crescimento.

No caso japonês, é o prolongamento da fase iniciada no estouro da sua própria bolha acionária e imobiliária no fim dos anos 80. Já o crescimento lento dos Estados Unidos, previsto pela maioria dos economistas, é uma mudança radical no panorama da economia global.

Durante décadas, o consumidor americano, levado por um desempenho excepcional da economia do país, foi a locomotiva da demanda mundial. Agora que o país é obrigado a poupar para corrigir seu desequilíbrio externo e o estrago nas finanças das famílias, dos bancos e de muitas empresas, era de se esperar que a China e outros países asiáticos aumentassem seu consumo interno para substituir o dos americanos.

Há controvérsias sobre se os chineses estão ou não cumprindo esse papel. O economista Jim O"Neill, do Goldman Sachs, criador da expressão Bric, acha que a China está ampliando o seu consumo e vai ter déficits comerciais em breve. A freada na valorização do yuan, porém, mostra que o país resiste a seguir esse caminho, apesar das cobranças dos Estados Unidos e das recomendações do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Enquanto isso, entre os países emergentes, há uma nítida separação entre os que foram mais machucados pela crise, como Turquia, Hungria, México e África do Sul, e também estão se recuperando mais lentamente, e aqueles com desempenho surpreendentemente bom, como Brasil, Polônia, Índia e boa parte dos países asiáticos.

No caso brasileiro, que se tornou uma das grandes estrelas do mundo pós-crise, o economista-chefe do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn, vem martelando a tecla de que o País está assumindo o papel de "consumidor de última instância", substituindo uma cota da demanda subtraída dos países ricos.

Esse é o cenário em que o Brasil amplia simultaneamente seu consumo e investimento, mas para isso produz um déficit em conta corrente na casa de 3% do PIB ou mais, que corresponde à "poupança externa" que entra para fechar as contas. A queda do dólar, somada ao câmbio fixo chinês, empurra a economia brasileira mais fortemente nesse caminho.

A recente imposição de um IOF de 2% sobre aquisições de bônus e ações por estrangeiros coloca o Brasil na vanguarda da resistência à valorização cambial, mas essa preocupação já é disseminada (ver matéria abaixo). Em recente artigo, o economista Yoshiaki Nakano, da FGV-SP, escreveu que a "guerra cambial dissimulada" substituiu o antigo protecionismo.