Título: O processo necessário
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/11/2009, Notas e informações, p. A3

Ao aceitar a denúncia do então procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, contra o senador tucano Eduardo Azeredo por apropriação de recursos públicos e lavagem de dinheiro, na sua frustrada tentativa de se reeleger governador de Minas Gerais em 1998, o ministro Joaquim Barbosa, relator da matéria no Supremo Tribunal Federal (STF), foi coerente com o seu parecer pela abertura de processo no caso do mensalão - o esquema petista de compra do apoio de parlamentares a projetos de interesse do governo Lula, revelado em 2005. A operação, como se sabe, reproduziu em escala federal os métodos adotados em Minas pelo ardiloso publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza para irrigar fraudulentamente a campanha de Azeredo e de uma vintena de outros políticos - daí as expressões "valerioduto" e "valerioduto mineiro". Ele tomava empréstimos bancários e transferia os respectivos valores para a campanha. Depois, saldava as dívidas com recursos de empresas estatais teoricamente destinados ao patrocínio de eventos esportivos.

Dos R$ 3,5 milhões recebidos dessas empresas, apenas R$ 98 mil foram efetivamente gastos na finalidade alegada. De acordo com o Ministério Público, Azeredo cometeu sete vezes o delito de peculato e seis vezes o de lavagem de dinheiro. Nas palavras de Barbosa, a denúncia "narra conduta criminosa com conteúdo probatório mínimo para a aceitação do crime". Embora o ministro Antonio Dias Toffoli, estreando no Supremo, tenha pedido vistas do relatório - adiando não se sabe por quanto tempo a votação do seu texto de mais de 200 páginas e na contramão do apelo do colega à "celeridade" -, não se imagina com base em que argumentos os seus pares possam rejeitar a ação penal proposta. Além de Azeredo, cujo envolvimento na arrecadação ilegal de recursos cabe ao STF avaliar, por ter ele direito a foro privilegiado, 14 outros suspeitos serão julgados em tribunais de primeira instância. Toffoli alegou que desejava examinar melhor um documento - segundo ele, "o único que leva a uma vinculação material do acusado".

Trata-se da cópia de um recibo, no valor de R$ 4,5 milhões, que Azeredo teria passado à empresa SMP&B, de Marcos Valério. Para o senador, não só a sua assinatura teria sido falsificada, como o recibo nem sequer teria sido mencionado na peça do procurador-geral da República. A autenticidade do papel pode ser contestada, mas a sua citação na denúncia está à vista de quem quer que a folheie - esvaziando a surpreendente insinuação de Azeredo de que Barbosa teria plantado o indício incriminador no seu relatório. O ministro, por sua vez, negou que isso era tudo o que tinha como prova contra o político, relativizou a própria importância do recibo e argumentou que a sua veracidade poderia ser discutida no curso do processo, em vez de obstar, ou retardar, a sua instalação. Ao que tudo indica, a defesa do acusado tentou criar um incidente processual para contrapor aos "indícios robustos" contra o seu cliente, apontados por Barbosa. Ainda mais revelador das aflições de Azeredo foi o seu protesto, numa entrevista, contra o que seriam "dois pesos e duas medidas".

Ele simplesmente reivindicou isonomia com o presidente Lula. Se este, no caso do mensalão, "alegou que não sabia e foi inocentado", o mesmo deveria se aplicar a ele, no caso do mensalão mineiro. "A situação é basicamente muito semelhante", comparou. "Eu era governador, uma campanha descentralizada, com delegação de poderes, e o presidente Lula também concorreu em situação semelhante e não recebeu nenhum inquérito a esse respeito." Não "recebeu" - e disso o ex-presidente do PSDB deve saber muito bem - porque o PSDB, talvez por ter o rabo preso, talvez por covardia, nada fez quando o publicitário Duda Mendonça revelou à CPI dos Correios, em agosto de 2005, que foi pago com dinheiro de caixa 2, mediante depósitos em contas secretas no exterior, pelos serviços prestados à campanha de Lula três anos antes. O ponto, de todo modo, é outro. O histórico do mensalão mineiro compilado pelo procurador-geral pulveriza a hipótese de que Azeredo pudesse ignorar a origem da dinheirama que sustentava a sua tentativa de se reeleger. Sem falar que, pela lei, o candidato é sempre o responsável último pelas finanças de sua campanha. O processo contra o tucano, em suma, é um imperativo de justiça.