Título: Como dar nó em pingo d'água?
Autor: Rocha, Marco Antonio
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/11/2009, Economia, p. B2

Qual é o problema, afinal?, perguntam-se brasileiros instruídos, mas perplexos com esse imbróglio do câmbio. Até há pouco tempo o grande problema não era a falta de dólares? Não acumulamos uma imensa dívida externa por tomar dólares emprestados para pagar produtos importados, juros exportados e até compras de petróleo? Agora, o problema é o excesso de dólares? Mas isso é um problema?

Parece que é. Mas ninguém precisa se lamentar por não ser capaz de entender bem a questão. Os gurus do governo não estão menos perplexos. O caso deles é até pior, pois, sendo governo, teriam de fazer alguma coisa, ter uma solução, e não a encontram.

Em que consiste a charada?

Em parte, foi a crise financeira internacional que a acentuou, pelo fato de o Brasil ter-se tornado um bom lugar para se investir ou se guardar dinheiro, no mundo. Fugindo dos dólares por causa dos riscos de desvalorização e dos baixos rendimentos, o capital financeiro procura outros portos: os bancos brasileiros, que pagam juros muito mais altos do que os bancos internacionais; as bolsas do Brasil, que apresentam menor risco do que as bolsas internacionais; os nossos fundos de renda fixa, mais garantidos pelo governo brasileiro do que os fundos americanos, que puseram dinheiro alopradamente em coisas pouco rentáveis e em empréstimos a quem não podia pagar.

Sem falar nos investimentos diretos para projetos que estão se desenvolvendo no Brasil, muitos deles do setor público, no âmbito do PAC, do pré-sal, etc., outros de empresas privadas, que lançam suas ofertas públicas de ações (IPOs, na sigla em inglês) nas bolsas, como a do Santander. E sem falar, ainda, nos superávits da balança comercial.

Em resumo, é muito dólar entrando - mais do que saindo - e não há demanda interna para absorver as sobras.

Como o nosso câmbio é flutuante - as cotações flutuam no ritmo da oferta e da demanda -, o resultado é que a do dólar cai em relação à do real - já caiu mais de 26% até agora, neste ano. O que significa que o exportador brasileiro recebe cada vez menos reais pelos mesmos dólares que lhe pagam por sua mercadoria no exterior. Como suas contas aqui são em reais, com os fornecedores, os empregados, os bancos, o fisco, etc., e aumentam, os lucros do seu negócio vão diminuindo. A médio e longo prazos ele pode desistir de exportar, mas aí ficaria com outro problema, o de abrir brecha no mercado interno para colocar a parte da sua produção que vinha sendo exportada, o que certamente exigiria que diminuísse seus preços. Ou seja, trocaria seis por meia dúzia - queda de receita, de qualquer jeito.

A China tem um problema semelhante: excesso de entrada de dólares. Mas o câmbio na China não é flutuante, é fixo. Então, o exportador chinês recebe sempre a mesma quantia em moeda local, seja qual for a variação do dólar no exterior. Como o governo chinês ajeita isso? Bem, não é o primeiro nem será o último enigma com que a China desafia o mundo. Quem quiser, e tiver tempo, pode-se dedicar a responder à esfinge.

O enigma no Brasil tem outra face, a do importador. Leva vantagem, pois com o dólar valendo menos pode importar mais, pelos mesmos reais, e vender a sua mercadoria ao comprador brasileiro por aquele precinho camarada que já nem é mais chinês... é coreano. Em detrimento da mercadoria semelhante de produção nacional. O que significa menos trabalho para os brasileiros aqui e mais trabalho para os coreanos lá (ou aqui...).

Bom, o governo brasileiro poderia fazer o que já fez no passado: impor impostos verdadeiramente assassinos sobre produtos importados, principalmente os duráveis e semiduráveis. O brasileiro teria de se virar com o produto nacional. Haveria menos importações, de fato, com maior estímulo ao contrabando. E... sobrariam mais dólares no mercado interno, uma vez que muitos importadores deixariam de comprá-los - o que deprimiria de novo a cotação do dólar.

Então, é aquela velha história de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Isso no terreno em que o governo se autoenclausurou.

Esse terreno é o das contas públicas. O governo aí armou a sua fortaleza e não quer nem de longe ouvir falar em corte de gastanças, redução de impostos e outros que tais.

É verdade que reduziu impostos neste ano para reanimar o consumo de alguns setores, mas não quis cortar gastos na mesma proporção, para não perder o cacife eleitoral, e criou um déficit que não pode ser mantido. Tanto é que os impostos cortados já estão voltando.

O que cria dificuldades para o exportador brasileiro não é propriamente a queda do dólar, que aumenta o preço das nossas mercadorias no exterior e reduz a receita em reais. É o custo de produzir a mercadoria. O chamado custo Brasil: impostos muito mais altos do que os dos concorrentes, juros muito mais altos também, custos de transportes também, custos de energia também, e por aí vai...

O Brasil tanto precisa de investimentos estrangeiros diretos que o presidente Lula foi a Londres para buscar mais. Se for bem-sucedido, aumentará o imbróglio cambial: criará mais dificuldades para os exportadores brasileiros, mais facilidades para os importadores, mais problemas de concorrência de produtos importados para a indústria nacional.

Isso mostra que não estamos diante de um imbróglio miúdo. Estamos sem uma estratégia de governo de médio e longo prazos e num joguinho de passes curtos de meio de campo, sem visão de gol. O ministro Guido Mantega vai propor ao Grupo dos 20 uma "coordenação mundial de políticas cambiais". Ou seja, que os 20 resolvam nossa charada. É um gênio.

Sabem quantas vezes isso já foi proposto - desde que Charles de Gaulle governou a França? Talvez umas 50. E sabem quantas vezes a proposta teve sucesso? Nenhuma.