Título: Democracia é nossa única alternativa
Autor: Simon, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2009, Internacional, p. A20/21

Historiador e economista americano revisita sua tese sobre a queda do Muro e fala dos desafios atuais do capitalismo

Entrevista Francis Fukuyama: autor da teoria sobre o "fim da História"

O intelectual hegeliano que viu na queda do Muro de Berlim o "fim da história" e o triunfo definitivo da democracia liberal não mudou de ideia 20 anos depois. Em 1989, Francis Fukuyama, professor de política comparada da Universidade Johns Hopkins, escreveu que, com o esfacelamento da URSS, o sistema democrático derrotava seu último rival no plano das ideias, o socialismo, e se impunha ao mundo como único modelo político. "O que podemos estar vendo não é apenas o fim da Guerra Fria, mas o fim da própria história: o encerramento da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como última forma de governo humano", escrevera. Mas, questionado pelo Estado duas décadas depois sobre as dificuldades da promoção de regimes democráticos, Fukuyama mudou o tom: "Acho que nunca disse que a universalização da democracia ocidental era inevitável." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o sr. avalia, 20 anos depois, o argumento de que o ideal democrático-liberal triunfou sobre seus rivais - absolutismo, fascismo, comunismo - e, dessa forma, a evolução das ideias políticas teria chegado ao fim com a queda do Muro de Berlim?

Há 20 anos, eu discutia mais o rumo que as coisas tomavam do que a realidade concreta daquele momento. Mesmo assim, acho que foi uma boa avaliação. Se compararmos 1989 com hoje, veremos que fomos de um mundo de cerca de 60 a 70 países que poderiam ser classificados de "democráticos" para algo em torno de 140 democracias atuais. Houve retrocessos em lugares como Rússia e Venezuela nos últimos anos. Mas, em termos gerais, parece-me que o consenso entre economias avançadas de que a democracia é o melhor sistema político continua extremamente forte. E é interessante notar que essa percepção não foi abalada nem sequer pela crise financeira iniciada no ano passado.

O sr. previu a universalização de democracias liberais. Hoje, temos países como China e Rússia, que apresentam uma espécie de capitalismo centralizado erguido em torno do Estado. Autocracias de livre mercado podem representar um novo modelo político?

O único que poderia ser eventualmente considerado é a China. Rússia, e mesmo Venezuela, são tão dependentes do preço do gás e do petróleo que não podem ser vistos como um modelo sustentável. A China é um grande país, cuja economia não depende diretamente da posse de recursos energéticos. O governo chinês conseguiu alcançar uma impressionante posição de liderança em temas da agenda econômica. No entanto, há duas grandes questões. Primeiro, será que esse modelo pode ser exportado? E, segundo, será que os próprios chineses vão mantê-lo, já que a China continua sendo um país consideravelmente pobre, com sérias questões em seu sistema político? A meu ver, esses problemas não podem ser resolvidos pelo atual sistema autoritário. Será que daqui a 15 anos, quando houver uma classe média chinesa maior, eles estarão satisfeitos?

O sr. está dizendo que, no fim, a China também seguirá o rumo da democracia liberal?

Não sei se nos moldes ocidentais. Há razões, porém, para acreditar que é preciso mais participação no sistema político chinês. O topo do regime tem se mostrado habilidoso em conduzir a economia. No entanto, o baixo escalão do poder tem altos índices de corrupção e de incompetência na gestão do Estado. Não é possível resolver esses problemas de cima para baixo, sob controle do partido. A China não vai mimetizar democracias ocidentais, mas haverá uma pressão - que, sem dúvida, será crescente - por transparência e prestação de contas.

Retorno à questão colocada anteriormente: 20 anos após a queda do Muro de Berlim, o sr. ainda acha que a universalização da democracia é um acontecimento inevitável?

Não sei se é inevitável - aliás, acho que nunca disse que era inevitável. O que eu penso é que, no plano das ideias políticas, a democracia parece ser mesmo a única alternativa que temos, embora nem todos consigam adotá-la. O que é possível dizer é que, até agora, ela não foi substituída por algo melhor.

O sr. citou a crise que abalou a economia internacional no ano passado. O aumento do papel do Estado na economia tornou-se de fato inevitável?

Sim. Passamos por um ciclo iniciado com o ex-presidente americano Ronald Reagan (1981-1989) e com a ex-premiê britânica Margareth Thatcher (1979-1990), no qual havia uma pressão para reduzir o papel do Estado e desregulamentar a economia - princípios que ficaram conhecidos como o Consenso de Washington. Quando isso ocorreu, pouco após o início das crises econômicas na América Latina, tratava-se de uma mudança necessária. Contudo, ela foi longe demais. E a atual crise financeira é uma de suas consequências. Tínhamos um setor financeiro em Wall Street fictício, sem nenhum tipo de controle. Foi algo similar à crise asiática, quando houve um forte fluxo de capitais à região sem que os bancos estivessem submetidos a uma supervisão, provocando um choque na economia. Americanos não escutaram seus próprios conselhos sobre os perigos desse dinheiro desregulamentado. Produzimos uma crise global porque fracassamos em controlar Wall Street. Portanto, inevitavelmente haverá um retorno à intervenção do Estado. Não será, porém, como nos anos 30, porque também aprendemos sobre os perigos de interferir demais na economia.

O sr. escreveu sobre a influência da era Reagan e do fim da Guerra Fria no pensamento dos formuladores de política nos EUA. A guerra de 2003 no Iraque, por exemplo, seria uma tentativa malsucedida de repetir os acontecimentos do início da década de 90 na Europa do Leste. Como a queda do Muro de Berlim mudou a política externa americana?

A queda do Muro não moldou as concepções de todos os formuladores de política, mas, sobretudo, das pessoas que integraram o governo do ex-presidente dos EUA George W. Bush (2001-2009) - boa parte delas havia trabalhado com George H. Bush (1989-1993). Esses funcionários viram uma espécie de "milagre político". Tinha-se um ator, como a URSS, que parecia ser algo perene no sistema internacional, o qual exigia uma política de poder com compromissos e tratados de controle de armas. Então, aparece Reagan e pede que Gorbachev "derrube esse Muro" - algo que lhe rendeu muitas críticas, porque pensava-se que isso era pouco realista - e o tal Muro cai em 1989, com a URSS entrando em colapso dois anos depois, literalmente deixando de existir. Isso criou a concepção de que esses regimes autoritários têm uma fragilidade intrínseca e podem ser abalados por uma "maré democrática". Eu penso que há uma tendência global em direção à democracia, mas acredito que os eventos de 1989 foram excepcionais. Teremos ainda várias transições democráticas, mas elas serão lentas, difíceis, com reveses. O colapso de regimes autoritários é raro. Talvez aconteça no Irã nos próximos anos. No entanto, pessoas no governo Bush acreditavam que se tratava de um padrão que veríamos ser repetido no Oriente Médio. É aí que cometeram um grave erro. No fim, uma democracia só pode ser estabelecida por fatores internos, não sob a mira de uma arma.

O sr. é um crítico da chamada escola realista, que advoga o pragmatismo e a política de poder nas relações internacionais. O presidente americano, Barack Obama, porém, tem sido associado a essa tendência. Que papel tem hoje a promoção da democracia na agenda externa dos EUA?

Obama está reagindo ao governo Bush. Obviamente, ele não quer se envolver na retórica falha da difusão da democracia mundo afora. Contudo, tampouco acredito que ele seja alguém como Henry Kissinger (ex-secretário de Estado americano), que tem, por princípio, uma política realista que desconsidera a questão dos direitos humanos e da democracia. Obama, porém, ainda não foi realmente testado. Ele não passou por uma situação na qual deve se posicionar de maneira realmente firme. Isso deverá aflorar, novamente, no Oriente Médio, onde ele será confrontado com países como o Egito, onde há um regime autoritário que viola os direitos humanos. No entanto, não acho que Obama seja um clone de Kissinger.

O sr. afirmou que, com o fim da Guerra Fria, os EUA deixaram de impedir que governos de esquerda e centro-esquerda chegassem ao poder na América Latina. Isso teria sido fundamental para a promoção da democracia e do desenvolvimento na região. O sr. pode explicar melhor essa tese?

Posso dar exemplos concretos disso. O atual embaixador chileno na Organização das Nações Unidas (ONU) é Heraldo Muñoz, que no momento do golpe em seu país, em 1973, era membro de um grupo de estudantes marxistas. Ele estava envolvido na luta armada pela revolução socialista. Muñoz conseguiu evitar a prisão e fugiu do Chile. Após a volta da democracia (com as eleições de dezembro de 1990), ele retornou a seu país e hoje é uma das pessoas mais respeitadas na comunidade diplomática. O fato de o Chile, com pessoas como Muñoz, ser hoje um forte aliado dos EUA evidencia a diferença na forma como Washington lida com a América Latina desde o fim da Guerra Fria. Temendo a disseminação do comunismo, contribuímos com a polarização na região. Agora que essa lógica parece ter se esgotado, percebe-se que um líder como o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva - alguém saído da esquerda operária brasileira -, pode ser um grande aliado da democracia. Hoje, os EUA veem o Brasil do presidente Lula como um poder estabilizador na América Latina. Isso era absolutamente inimaginável no contexto bipolar que vigorava anteriormente.