Título: À espera de uma nova visão de mundo
Autor: Buruma, Ian
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2009, Internacional, p. A22

Há 20 anos, quando o Muro de Berlim foi derrubado e o império soviético entrou em colapso, só os que acreditavam obstinadamente na utopia comunista se sentiram infelizes. Alguns agarraram-se à possibilidade do que antes se considerava ser um "socialismo realmente existente". Outros criticaram o triunfalismo da "nova ordem mundial" prometida por George H. Bush. Contudo, 1989 foi uma boa época para se estar vivo. Muitos de nós sentiam estar vendo a aurora de uma nova era liberal, em que a liberdade e a justiça se disseminariam como flores frescas pelo globo. Depois de 20 anos, vemos que isso não ocorreu.

O populismo xenofóbico ronda as democracias na Europa. Os partidos social-democratas estão encolhendo, ao mesmo tempo que demagogos de direita prometem proteger os "valores ocidentais" contra as hordas islâmicas. E as debacles econômicas dos últimos anos parecem corroborar o recente alerta de Mikhail Gorbachev, de que "também o capitalismo ocidental, privado do seu antigo adversário, se imaginando o vitorioso absoluto e a encarnação do progresso global, corre o risco de levar a sociedade ocidental e o restante do mundo para um novo beco sem saída".

No momento, parece que os liberais, na verdade, podem ser um dos perdedores de 1989. Os social-democratas sempre foram odiados pelos comunistas. E vice-versa. No entanto, muitos ideais social-democratas, com raízes nos conceitos marxistas de justiça social e igualdade, foram jogados fora.

Esse processo já estava em curso antes da queda do Muro, com as teorias radicais do livre mercado da era Thatcher e Reagan. A sociedade, declarou certa vez Margaret Thatcher, não existe. Era cada um por si.

Para muitas pessoas, isso significava libertação, por isso foi chamado neoliberalismo. O radicalismo do livre mercado, porém, corroeu o papel do Estado na criação de uma sociedade melhor, mais justa e igualitária. Os neoliberais não têm muito interesse na justiça, mas sim numa eficiência maior, em mais produtividade e resultados finais.

Ao mesmo tempo em que os neoliberais abriam seu caminho, passando por cima dos velhos acordos social-democratas, a esquerda consumia suas energias em políticas culturais, "identidade" e multiculturalismo ideológico. O idealismo democrático antes era domínio da esquerda, incluindo social-democratas e liberais. Nos EUA, foram democratas como John F. Kennedy que promoveram a liberdade pelo mundo.

No século 20, contudo, para muita gente de esquerda, o mais importante era salvar a cultura do "Terceiro Mundo" - por mais bárbara que fosse - do "neocolonialismo", em vez de apoiar a democracia. E passou-se a defender ditadores brutais simplesmente porque se opunham ao "imperialismo soviético".

FIM DO IDEALISMO

Como resultado, todas as políticas que derivaram do marxismo, por mais flexíveis que fossem, perderam credibilidade e, finalmente, sucumbiram em 1989. O que foi um desastre para comunistas, socialistas e também para os social-democratas, porque perderam a base ideológica do seu idealismo. E, sem idealismo, a política se torna uma espécie de contabilidade, administração de interesses puramente materiais.

No entanto, a retórica do idealismo não desapareceu. Simplesmente mudou da esquerda para a direita. E isso começou também com Reagan e Thatcher. Eles retomaram a promoção da democracia no mundo iniciada por Kennedy. Quando a esquerda abandonou a linguagem do internacionalismo, ela foi absorvida pelos neoconservadores. A promoção feita por eles da força militar americana como o braço forte da democracia pode ter sido enganosa, arrogante e muito perigosa, mas foi incontestavelmente idealista

O encanto do ímpeto revolucionário atraiu velhas figuras de esquerda para o lado neoconservador. Contudo, muitos liberais ficaram profundamente alarmados com os neocons, mas não conseguiram encontrar uma resposta coerente.

Tendo perdido seu próprio entusiasmo pelo internacionalismo, a resposta encontrada pelos liberais para o radicalismo neoconservador foi um apelo ao "realismo", à não ingerência nos assuntos dos outros e uma retirada do mundo. Esse pode ser o caminho mais prudente em muitos casos, mas não é nada inspirador.

Pela primeira vez desde o governo Kennedy, os EUA hoje são uma das únicas democracias liberais do mundo com um governo de centro-esquerda. O presidente Barack Obama conseguirá liderar o caminho na direção de uma nova era de idealismo social e político? Parece improvável.

Reagan, Thatcher e Gorbachev participaram do fim de uma ideologia que outrora oferecia esperança e inspirava um progresso real, mas que resultou em escravidão e assassinatos em massa. Ainda estamos esperando uma nova visão do mundo que nos conduza ao progresso, só que, desta vez, sem tirania.

*Ian Buruma é autor do livro "Murder in Amsterdam: The Death of Theo van Gogh" (Assassinato em Amsterdã: a morte de Theo van Gogh) e "Limits of Intolerance" (Limites da Intolerância). Ele é professor de democracia, direitos humanos e jornalismo no Bard College. Seu livro mais recente é o romance "The China Lover" Copyright: Project Syndicate, 2009