Título: Ápice como cineasta foi com adaptação de peça teatral
Autor: Brasil, Ubiratan
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/11/2009, Vida&, p. A27

Inspirado no texto de Dias Gomes, filme derrotou candidatos como Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni e Robert Bresson

Homem de vários instrumentos, Anselmo Duarte passa à história como o único brasileiro até agora a vencer o mais badalado festival de cinema do mundo, o de Cannes. Em 1962, já brigado com o então dominante Cinema Novo, Anselmo recebeu a Palma de Ouro por O Pagador de Promessas, adaptado da peça de Dias Gomes. Para chegar ao prêmio, derrotou candidatos temíveis, entre os quais O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Processo de Joana D"Arc, de Robert Bresson, e O Eclipse, de Michelangelo Antonioni. Desde então se discute no Brasil a justiça dessa premiação, atribuída por um júri que tinha François Truffaut entre seus integrantes.

Seja como for, uma proeza e tanto, Anselmo foi recebido no Brasil como se tivesse vencido uma Copa do Mundo, o que não estava longe da realidade. Mas não foi a única façanha de alguém que, nascido em Salto, no interior paulista em 1920, virou ator de sucesso no Rio de Janeiro. É tido, inclusive, como o maior galã do cinema brasileiro, no tempo em que se queria construir uma indústria cinematográfica e precisava-se de um star system similar ao norte-americano. Quer dizer, um conjunto de atores e atrizes famosos, belos, talentosos e bem pagos, que entravam e saíam de cena, de um filme a outro.

Anselmo fez sua estreia no cinema com um pequeno papel em Inconfidência Mineira, da diretora Carmen Santos. Depois mudou-se para a Cinédia, companhia de Adhemar Gonzaga, onde fez Pinguinho de Gente, de Gilda de Abreu. Na Atlântida, a famosa fábrica de chanchadas, fez Terra Violenta ,de Eddie Bernoudy, e Caçula do Barulho, de Riccardo Freda. Dirigido por Watson Machado, estrela Carnaval de Fogo, onde contracena com Eliana Macedo. Vai enfileirando sucesso atrás de sucesso - A Sombra da Outra, Aviso aos Navegantes e Maior que o Ódio.

Mas no começo dos anos 50, o eixo da indústria de cinema deslocou-se para São Paulo e Anselmo voltou ao seu Estado natal para trabalhar na Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Estreou, já como astro absoluto, em Tico-Tico no Fubá, cinebiografia do compositor dirigida pelo italiano Adolfo Celi. No mesmo estúdio, trabalhou, como galã, em filmes como Apassionata, de Fernando de Barros, Veneno, de Gianni Pons, e Sinhá Moça, de Tom Payne e Oswaldo Sampaio. Galã, sim, mas talvez seu maior papel seja o de vilão em um filme muito duro e influente de Luís Sérgio Person, O Caso dos Irmãos Naves (1967), sobre um erro judiciário ocorrido em Araguari (MG). Nele, Anselmo faz o truculento militar que comanda a tortura aos suspeitos, tornados culpados antes do julgamento.

Anselmo traz toda essa influência de ator quando passa a dirigir. Seu primeiro longa, Absolutamente Certo (1957), fala dos programas de perguntas e respostas então em voga na TV brasileira. Mas o melhor mesmo é O Pagador de Promessas (1962), por mais que parte da crítica, então alinhada com o Cinema Novo, o tenha chamado de "quadrado". Usa, de fato, uma estética mais convencional se comparada a rupturas como as que inspiravam os cinemanovistas. Mas a simplicidade revela-se eficiente para contar a história do homem comum, Zé do Burro (Leonardo Villar), que insiste em entrar na igreja carregando uma cruz, conforme havia prometido a Santa Bárbara. O filme se beneficia do bom elenco e da fotografia inventiva de Chick Foley. O plano com a cruz vista de cima, entrando por fim na igreja, fica para a antologia do cinema brasileiro, diga-se o que se quiser.

O filme seguinte, Vereda da Salvação (1964), também tirado de um texto teatral, desta vez de Jorge de Andrade, é digno, sério, respeitoso, mas não produz o mesmo encanto de O Pagador de Promessas. O mesmo pode ser dito de outras produções como Um Certo Capitão Rodrigo (1970)ou O Crime do Zé Bigorna (1977). São filmes que respiram o tom um tanto acadêmico que era afinal aquele no qual o ator Anselmo Duarte havia se formado, em especial em sua fase na Vera Cruz. Nesse sentido, O Pagador de Promessas foi uma notável exceção, daquelas que justificam toda uma vida.