Título: Verdadeira era de mudanças ainda está por vir
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/11/2009, Internacional, p. A12

As pessoas que vivenciaram aquela noite 20 anos atrás, em Berlim ou em qualquer parte da Alemanha, jamais a esquecerão. A história, no seu processo, com frequência é muito trágica. Só raramente é capaz de ironia. O dia 9 de novembro de 1989 foi um desses raros momentos em que a ironia predominou, porque o socialismo burocrático da Alemanha Oriental morreu como viveu - como uma encrenca burocrática.

O presidente do Politburo, Guenther Schabowski, simplesmente interpretou erroneamente uma decisão do órgão e, ao divulgar uma informação incorreta sobre a suspensão das restrições de viagem para a população, desencadeou a queda do Muro. Groucho Marx não teria conseguido vencer Shabowski naquele dia. Foi a hora mais feliz da Alemanha.

Tivemos muitas consequências revolucionárias do que sucedeu naquela noite. A União Soviética e o seu império desapareceram e, com eles, a ordem internacional da Guerra Fria. A Alemanha voltou a ficar unida, a Europa Oriental e os Estados da periferia soviética conquistaram a sua independência; o regime do apartheid da África do Sul desmoronou, inúmeras guerras civis na Ásia, África e América Latina chegaram ao fim; israelenses e palestinos chegaram mais perto da paz; e a desintegração da Iugoslávia degenerou em uma guerra e limpeza étnica. No Afeganistão, a guerra prosseguiu sob circunstâncias diferentes, com sérias ramificações para a região e, na verdade, para o mundo.

Como herdeiro vitorioso da Guerra Fria, os Estados Unidos ficaram sozinhos, únicos e incontestados, no ápice do seu poder global.

Mas, em duas décadas, após a guerra no Iraque e a crise financeira, o país desperdiçou esse status especial. O poder arrogante e uma cegueira diante da realidade foram as duas principais causas do declínio da única superpotência remanescente.

Embora grande parte da culpa seja de George W. Bush, numerosas tendências negativas já o precediam. Ele somente levou essa tendência ao extremo.

Depois de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos tiveram a segunda maior oportunidade de usar seu poder excepcional para reorganizar o mundo. Depois daquele terrível atentado, os países - incluindo os do mundo árabe - estavam prontos para aceitar medidas de longo alcance.

Naquele momento, a paz entre palestinos e israelenses podia ter sido alcançada e, com ele, um novo início no Oriente Médio.

Mesmo uma mudança radical na política energética americana, com a introdução de novas taxas de energia, teria sido possível sob a divisa da segurança nacional. Dessa maneira, o desafio apresentado pela mudança climática em todo o mundo podia ter sido combatido de modo mais eficaz. Mas essa oportunidade também foi jogada no lixo.

A Europa - e, inserida nela, a Alemanha - foi a grande vitoriosa da queda do Muro. O continente de novo uniu-se em liberdade: a Alemanha em 3 de outubro de 1990; a Europa, com a grande ampliação da União Europeia de 1º de maio de 2004. A introdução de uma moeda comum europeia foi um sucesso; mas a integração política por meio de um tratado constitucional foi um fracasso. A partir daí, a UE estagnou, interna e externamente. A Europa tem feito uso insuficiente das oportunidades emanadas de 1989 - e pode perder enormemente a sua influência na estrutura de poder emergente do século 21.

Na Alemanha, que deve amplamente a reunificação às suas raízes sólidas na União Europeia e na Otan, o desânimo com a Europa é palpável. A geração no poder em Berlim pensa cada vez mais em termos nacionais e não europeus. Isso nunca ficou tão óbvio quanto nos dias decisivos da crise financeira global.

Duas décadas depois a Rússia, a grande perdedora de 1989, continua atolada num misto de depressão econômica social, regressão e ilusão políticas. A expectativa de vida continua declinando; os investimentos em infraestrutura, pesquisa e educação atrofiaram; a economia mal consegue competir internacionalmente; e a divisão social entre pobres e ricos se aprofunda.

Economicamente, a Rússia tornou-se uma exportadora de commodities, dependente dos imponderáveis do mercado de energia global, e ao mesmo tempo sonha em poder usar a energia como instrumento para modificar a ordem pós-soviética na região.

As elites russas ainda pensam muito nas categorias de poder dos séculos 19 e 20. Esse é um elemento ilusório e historicamente regressivo da atual política russa. O desejo do país de reclamar seu papel como uma potência global poderosa é compreensível e legítimo. Mas se o país quer retornar ao seu passado para buscar o seu futuro e acredita que pode prescindir de investimentos no futuro em favor do vergonhoso auto-enriquecimento pessoal, continuará perdendo espaço.

O dia 9 de novembro de 1989 assinalou não apenas o fim da Guerra Fria, mas também o começo de uma nova onda de globalização. Os reais vencedores dessa nova ordem mundial são os grandes países emergentes, sobretudo a China e a Índia, que determinam cada vez mais o ritmo do desenvolvimento político e econômico global.

O G-8 é descartado pela história como um clube de nações industrializadas ocidentais; seu lugar vem sendo ocupado pelo G-20, que oculta a fórmula latente de distribuição do poder dentro da nova ordem mundial: o G-2 (China e Estados Unidos). Todas essas mudanças refletem uma transferência impressionante de poder do Ocidente para o Oriente, da Europa e dos EUA para a Ásia, o que nas próximas décadas provavelmente vai acabar com 400 anos de Eurocentrismo.

Os últimos 20 anos também viram o mundo começar a atingir seus limites ecológicos. A maior parte da humanidade quis atingir os padrões de vida do Ocidente a qualquer custo, abusando dos ecossistemas e do clima do nosso planeta.

Os anos que se seguiram desde a queda do Muro foram ricos em mudanças incríveis, mas a verdadeira era das grandes reviravoltas está por chegar. O aquecimento global é apenas a ponta do iceberg daquilo para o qual estamos avançando, deliberadamente e com os olhos bem abertos. O importante agora é que os Estados adotem medidas globalmente e em uníssono. Vinte anos após Berlim, Copenhague está chamando.

*Joschka Fischer é membro do Partido Verde há 20 anos e foi ministro das Relações Exteriores da Alemanha .

© Project Syndicate/Instituto de Ciências Humanas 2009

CHANCES PERDIDAS

Desde o fim da Guerra Fria, a "perdedora" Rússia não consegue recuperar sua relevância. Contudo, os "vencedores" - Europa e EUA - também não conseguiram aproveitar a chance e melhorar o nível de vida global. Em 20 anos, houve uma transferência de poder para o Oriente, em especial para a China. Após duas décadas, o mundo tem de enfrentar o aquecimento do planeta, um desafio realmente global.