Título: Gdansk, ícone da revolução, luta contra a decadência
Autor: Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2009, Internacional, p. A22

Berço do sindicato Solidariedade, estaleiro reflete falhas da transição

No portão do Estaleiro Gdansk, as homenagens aos heróis que derrubaram a ditadura ainda sobrevivem, ao lado de uma bandeira da Polônia e outra do sindicato Solidariedade, além de uma foto do papa João Paulo II - polonês e anticomunista. Mas basta passar os portões para perceber que a transformação no Leste Europeu acabou cobrando um preço alto deste porto que é considerado um dos ícones das revoluções de 1989 e berço do Solidariedade, primeiro sindicato independente de todo o bloco soviético.

Gdansk, hoje modernizada, transformou-se no espelho de todas as contradições da transição no Leste Europeu. De um lado, uma nova geração europeia buscando oportunidades nos setores de ponta. De outro, uma geração mais velha que ainda não entende como lutou tanto para hoje nem sequer ter emprego.

Nos anos de seu apogeu, o estaleiro era o quinto maior do mundo, com uma produção de 35 navios por ano. Em 2009, serão apenas quatro embarcações por causa da concorrência dos navios chineses e da pior recessão no mundo em 70 anos.

Em duas décadas, o estaleiro - que se chamou Lenin até 1989 - demitiu 90% de seus 18 mil empregados, foi privatizado e comprado por capital estrangeiro. Na prática, só sobreviveu graças a subsídios bilionários. Hoje, parte de seus funcionários é de imigrantes vietnamitas, ucranianos e coreanos, que passaram a aceitar salários mais baixos e ocuparam o lugar dos poloneses.

O sindicato Solidariedade, que em 1989 tinha 10 milhões de integrantes, hoje conta com 750 mil e é visto como "traidor" pela maioria dos trabalhadores.

Gdansk foi o palco de uma greve em 1980 que acabaria levando à democratização da Polônia em 1989, conduzida pelo eletricista Lech Walesa e trabalhadores que desafiaram os tanques do regime comunista comandado pelo general Wojciech Jaruzelski.

Um dos líderes históricos do Solidariedade, Jerzy Borowczak, contou ao Estado como compareceu na madrugada de 14 de agosto de 1980 ao estaleiro para preparar a greve histórica. Borowczak acabou preso por 10 meses e torturado em 1981.

"Tivemos de esperar mais uma década para ter o resultado daquela greve. Conseguimos negociar o estabelecimento de eleições livres e ganhamos 99 das 100 cadeiras do Parlamento. Ninguém acreditava."

O porto de Gdansk foi comprado por investidores ucranianos ligados aos interesses de Moscou. Walesa deixou claro sua oposição à venda. "Vendemos nossa mãe. Isso foi um crime. Hoje, o estaleiro não é nosso, é ucraniano", disse.

O atual diretor-geral do Estaleiro Gdansk, o búlgaro Boshidar Metschkow, recebeu o Estado em sua sala e explicou que a empresa tinha duas opções: permanecer como uma peça de museu ou modernizar-se. "Eu quero que meus filhos tenham orgulho do que ocorreu aqui. Mas eles precisam ter orgulho do futuro da empresa também. Aqui, fazemos negócios. Não somos um museu."

Se Walesa sente a perda, os trabalhadores que ficaram sem emprego estão ainda mais frustrados. "Onde é que estava Walesa quando tudo começou a cair por terra? Ele era o presidente da Polônia e nada fez nada para nos salvar", disse Adam, um ex-funcionário do estaleiro que há cinco anos perdeu o emprego.

Neste ano, o estaleiro chegou a um ponto crítico. Pelas leis da União Europeia, uma empresa não poderia receber subsídios públicos a fundo perdido. Assim, seus diretores optaram por um plano de reestruturação. Duas das três docas terão de ser fechadas até o mês que vem e um limite de produção será estabelecido. Os terrenos do estaleiro foram vendidos para empresas imobiliárias, que construirão prédios residenciais.

CONTRADIÇÕES

A crise no estaleiro, porém, não é vista como a falência de Gdansk, pelo menos para a nova geração. A cidade está se transformando em um centro tecnológico, com investimentos da Intel e outras empresas do ramo. O objetivo é criar uma espécie de Vale do Silício no Mar Báltico. A paisagem da cidade também mudou. Condomínios de luxo apareceram nos últimos anos, assim como lojas de grifes famosas.

O capitalismo ainda criou uma classe de poloneses ricos que, como qualquer outra elite no mundo, quer ter seus iates. Não por acaso, empresas de construção de veleiros de luxo proliferam na região.

Na sede do Solidariedade, ninguém esconde que os tempos são difíceis. Acusado de ter abandonado os trabalhadores durante as privatizações, o sindicato hoje também tenta se modernizar - oferece cursos de inglês à geração que apenas aprendeu russo como língua estrangeira.

Mas, para a geração de 1989, essa adaptação pode jamais ocorrer. "Nem nós, os trabalhadores, nem os políticos sabíamos que a mudança seria tão profunda", diz Borowczak. "Chego a pensar nos meus dias na prisão e os sonhos que tínhamos. Mas o choque foi muito grande e até os líderes do movimento perderam seus empregos alguns anos depois de conquistar a liberdade. Nós perdemos o trem em algum momento da transição", acrescenta, melancólico.