Título: Barreira contra barreira
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2009, Notas e informações, p. A3

O governo brasileiro impôs mais uma barreira à importação de produtos argentinos, ao instituir licenças não automáticas para a compra de autopeças, um item especialmente importante no comércio bilateral. A nova restrição entrou em vigor na semana passada. Nessa segunda-feira, os ministros de Relações Exteriores dos dois países, Celso Amorim e Jorge Taiana, reuniram-se para preparar o encontro dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Cristina Kirchner marcado para dia 18. A imposição de mais um entrave burocrático à entrada de mercadorias argentinas também foi, obviamente, um ato preparatório da reunião presidencial. Tornou mais ostensiva a insatisfação brasileira em relação às condições do comércio bilateral, prejudicadas nos últimos 12 meses pelo aumento do protecionismo argentino. As medidas protecionistas haviam incluído barreiras contra autopeças produzidas no Brasil. A reação brasileira tornou-se mais dura a partir do mês passado, quando foram adotadas licenças não automáticas para a importação de 15 classes de produtos, incluídos vinhos, trigo e frutas. Empresários e autoridades argentinas protestaram, acusando o governo brasileiro de agir sem aviso-prévio.

O chanceler Taiana também mencionou esse ponto, mas essa não é a questão essencial. O problema importante, de fato, é outro. É preciso saber se governantes e empresários argentinos estão dispostos a levar a sério a integração comercial dos sócios do Mercosul e a cumprir as regras de que depende o bom funcionamento de uma zona de livre comércio. Há anos a resposta a essa pergunta vem sendo claramente negativa. A adoção de licenças não automáticas para a importação de produtos brasileiros, a partir do agravamento da crise internacional, apenas piorou um quadro já insatisfatório. Antes disso, exportadores brasileiros já estavam sujeitos a barreiras e a acordos de limitação "voluntária" de embarques. O protecionismo da Argentina, a maior parceira do Brasil no Mercosul, é um velho problema.

Novidade, mesmo, é a decisão do governo brasileiro de responder às ações argentinas com a adoção de barreiras do mesmo tipo. Durante anos, o presidente Lula e os chefes da sua diplomacia preferiram ser tolerantes em relação ao protecionismo argentino. De fato, foram mais que tolerantes e aconselharam os empresários brasileiros a aceitar acordos de restrição "voluntária" de exportações.

Esses acordos foram duplamente prejudiciais ao País. Diminuíram suas exportações e facilitaram a conquista de espaço no mercado argentino por indústrias de outros países, porque houve desvio de comércio. Isso já havia ocorrido há alguns anos, quando houve restrições a eletrodomésticos brasileiros. Desta vez, produtores de sapatos perderam espaço para concorrentes chineses.

Nas duas ocasiões, o governo brasileiro só reagiu depois da divulgação, pela imprensa, de informações sobre o desvio de comércio. Nem o presidente Lula, apesar de sua disposição de tolerar desaforos de certos parceiros, poderia omitir-se em situações como essas.

Segundo Amorim, ele e seu colega argentino expuseram seus pontos de vista sobre o comércio bilateral, mas ainda é preciso aproximar as visões dos dois países. Em outras palavras: não se chegou a nenhum acordo relevante sobre como eliminar as distorções acumuladas no intercâmbio entre Brasil e Argentina. "O ideal", disse Amorim, "é não precisar dessas licenças não automáticas de importação."

Ele está certo, em princípio, mas a questão é mais complicada. As licenças foram apenas mais um entrave imposto pelo governo argentino ao comércio bilateral. Muitos outros haviam sido adotados em anos anteriores. Além disso, nem os critérios para administração das licenças foram respeitados. Pelas normas da OMC, o licenciamento não pode tardar mais que 60 dias, mas a demora vinha sendo, em vários casos, muito maior. Esse tipo de política arruína o Mercosul, compromete as possibilidades de ação conjunta em negociações internacionais e, afinal, não serve sequer para fortalecer a indústria argentina, cada vez menos competitiva. Renunciando à política de panos quentes, talvez o presidente Lula consiga uma conversa produtiva com a companheira Kirchner.