Título: A retaliação contra os EUA
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/11/2009, Notas e informações, p. A3

O Brasil prepara-se para retaliar os Estados Unidos por causa do subsídio ao setor algodoeiro. A política americana foi condenada em sentença definitiva pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar disso, o governo do presidente Barack Obama recusou-se a eliminar a prática ilegal. Com isso, a parte vencedora foi autorizada a impor uma retaliação. É essa, agora, a única forma de dar eficácia à regra internacional, se não surgir uma proposta de compensação. Como nenhuma proposta foi apresentada até agora, as autoridades brasileiras preparam-se para escolher a penalidade mais conveniente. Apesar da condenação, a posição mais confortável, neste momento, é a da parte perdedora do processo.

O governo brasileiro publicou uma lista de 222 produtos passíveis de serem sobretaxados a partir de janeiro. O conjunto é formado por 64% de bens de consumo e 36% de bens intermediários. A relação inclui medicamentos, cosméticos, alimentos, motores, vestuário, tecidos, congeladores, pneus, automóveis e televisores, entre outros itens. A lista foi divulgada para o setor privado avaliar a conveniência de cada item.

É interesse do governo, segundo a explicação oficial, evitar prejuízos para as empresas e para os consumidores brasileiros. Por isso foram excluídos bens de capital e mercadorias sem similares produzidos por empresas brasileiras ou por fornecedores não americanos. O conjunto final incluirá um número menor de produtos e deverá equivaler a US$ 450 milhões, cerca de 50% da sanção prevista para 2010. A outra metade corresponderá, provavelmente, a uma retaliação cruzada e deverá envolver quebra de patentes e restrições ao setor de serviços.

A retaliação dificilmente será uma solução satisfatória. Processos na OMC são normalmente abertos porque um país se julga prejudicado por alguma prática de um parceiro - subsídio ilegal, barreira protecionista ou preço abaixo dos valores normais de mercado. O interesse de quem reclama é a eliminação da prática anticoncorrencial. A retaliação poderá produzir uma satisfação moral e, talvez, algum benefício passageiro, mas não resolverá o problema original. Frequentemente os governos desistem de retaliar e isso ocorre, em muitos casos, porque o perdedor acaba propondo alguma compensação pelo menos indireta.

O recurso à retaliação, tal como previsto nas normas da OMC, decorre de uma grave falha. Acordos internacionais deram origem a leis de comércio aplicáveis a todos os participantes do sistema, atualmente 153. O conjunto de regras foi revisto e aperfeiçoado em longas e difíceis negociações com a participação de números cada vez maiores de associados. Uma dessas negociações deu origem à OMC, há 15 anos. Foi um importante avanço em relação ao sistema anterior, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), estabelecido em 1948.

Os tribunais da OMC, com duas instâncias de julgamento, examinaram mais de 400 disputadas em 15 anos. Até aí o sistema funciona de forma bastante razoável, apesar da lentidão dos processos - inevitável, porque normalmente há recurso à instância superior. A partir desse ponto o mecanismo da lei se torna menos confiável. Governos de grandes potências nem sempre se dispõem a cumprir as determinações dos juízes. Nesse caso, o país perdedor fica exposto a sanções autorizadas pelo tribunal e em montante considerado suficiente para compensar os danos sofridos pela outra parte. Parece uma solução razoável, em vista da resistência. Mas não é.

Cabe ao vencedor do processo impor a retaliação. As leis são gerais, o sistema envolve uma organização técnica e burocrática e a função judicial é centralizada, mas a sanção depende da parte diretamente interessada. Esse procedimento pode pôr em confronto dois países de tamanhos muito diferentes. Nos casos extremos, um anão e um gigante. Se o governo da grande potência recusar o cumprimento de uma sentença, a lei provavelmente ficará sem aplicação. Mesmo os governos de grandes economias podem hesitar, na hora da retaliação, quando têm de agir contra um parceiro de peso.

O sistema só será plenamente eficaz quando a sanção for aplicada coletivamente, isto é, por toda a comunidade internacional. Quando isso ocorrer, os governos das maiores potências serão muito menos propensos a desprezar as sentenças dos juízes da OMC.