Título: Marighella, cidadão paulistano
Autor: Cesar, Aloísio de Toledo
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2009, Espaço aberto, p. A2

Dias atrás, a Câmara Municipal de São Paulo concedeu a Carlos Marighella, em homenagem póstuma, o título de cidadão paulistano. Curiosamente, essa demonstração de apreço a um comunista baiano pouco ligado a São Paulo ocorreu praticamente no mesmo momento em que o mundo festejava os 20 anos da queda do Muro de Berlim e do malogro mundial do comunismo.

Pessoas com a natureza de Marighella costumam gerar avaliações antagônicas, surgindo como heróis para alguns e como alucinados para outros. Marighella talvez fosse as duas coisas e por isso se compreende que um número reduzido de políticos tenha procurado reverenciar a sua memória. Mas, certamente, essa demonstração de apreço não é partilhada por número muito expressivo de pessoas.

Filho de um imigrante italiano e de uma negra descendente de escravos, desde jovem fez a opção política pelo comunismo e teve sua vida voltada para chegar ao poder pela luta armada. Ele foi o fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), que conseguiu agregar boa parte dos radicais de esquerda durante a ditadura militar de 1964, quase todos mortos em combate com as forças de segurança, inclusive o próprio Marighella.

A criação do novo movimento, de vocação extremada, significou o rompimento com o Partido Comunista, que era compreensivelmente chamado de apático e moroso. As pessoas mais próximas a Marighella costumam dizer que ele visualizava no brasileiro uma vocação reprimida para a luta armada e que seria necessário, tão somente, tirá-lo desse torpor.

Sua convicção provinha de dois fatos principais: a resistência descomunal de muitos brasileiros na Guerra de Canudos e a Coluna Prestes, que percorreu o Brasil, alimentada pelo sonho também revolucionário de Luiz Carlos Prestes, o principal nome do Partido Comunista no Brasil.

Preso várias vezes, desde 1932, por sua atuação política sempre de características radicais, enfrentou a ditadura de Getúlio Vargas, sendo preso e torturado muitas vezes. Quando veio a nova ditadura, de feição militar, em 1964, ele já estava sofrido e experimentado, causando a impressão de que nada tinha a perder na luta armada, a não ser a própria vida.

Passadas algumas décadas desde aquela sua opção pela luta armada, temos distância para conferir que não obteve êxito na empreitada. Realmente, o que devolveu a democracia aos brasileiros não foram as bombas detonadas pelos adeptos da luta armada, e sim a fala macia de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Mário Covas e outros.

No período mais cruento da ditadura militar, o estrategista Golbery do Couto e Silva idealizou a criação de um partido político de oposição ao regime. Cristalizaram-se, assim, a Arena, composta por governistas, e o MDB, que agrupava os políticos que tinham estômago para dialogar com os militares e convencê-los da conveniência de devolver o poder ao voto popular.

Iniciava-se aquilo que na época se chamava de abertura lenta, gradual e progressiva. Por incrível que pareça, foi o que deu certo. No início houve críticas severas dos radicais a esses políticos maneirosos e aparentemente inocentes que se filiaram ao partido de oposição, porque eram acusados de estar convalidando a ditadura brasileira.

Mas, em verdade, foi a malícia premeditada desse grupo que tirou os generais da torre de marfim e os fez entender que se impunha uma mudança no sistema eleitoral, com a adoção do voto direto em todos os níveis. Essa foi a verdadeira revolução, imposta pouco a pouco, com o passar dos dias, porém muito mais eficaz do que a luta armada.

A mesma distância no tempo nos permite observar que a luta armada de esquerda serviu mais para fortalecer do que para fragilizar a ditadura daqueles anos cruentos. Um ato, em especial, uniu praticamente o País todo contra a ação terrorista. Num gesto de provocação da Vanguarda Popular Revolucionária, que fez virar o estômago da maioria dos brasileiros, os terroristas lograram explodir uma potente bomba na entrada do quartel-general do II Exército, em São Paulo, fazendo em pedaços o sentinela Mário Kozel Filho, de 18 anos, que ali estava. Era tão somente um menino convocado para servir à Pátria, como tantos outros, e nada tinha que ver com o regime combatido.

Se havia algum descontentamento entre as tropas militares, pois nem todos concordavam com a ditadura, a partir do dia em que Mário Kozel Filho foi feito em pedaços pela bomba, a sua morte representou um traço de união.

Criou-se um consentimento tácito quanto à necessidade de os generais continuarem no poder. A partir disso, ocorreram as lamentáveis atrocidades, deixando mágoas que nunca cicatrizam.

Radicalizadas as posições, de um lado um grupo pouco expressivo em termos numéricos, e ainda por cima deficientemente armado, empenhava-se na luta armada contra militares treinados e donos de tanques e armamentos modernos.

Marighella era um dos expoentes dos que se atiravam a essa luta inglória. Sem dúvida, ele e seus aliados raciocinavam com o coração, pecado mortal numa guerra. Por ironia, foi morto junto à Avenida Paulista, talvez o ponto mais expressivo do capitalismo que ele tanto se dispôs a combater.

Em homenagem póstuma a Mário Kozel Filho, a avenida que passa em frente ao Comando Militar do Sudeste, local onde explodiu a bomba, acabou recebendo o seu nome.

Sua família passou a receber em agosto de 2003, por força da Lei Federal nº 10.724, pensão mensal de R$ 300, aumentada em 2005 para R$ 1.140, quantia pouco expressiva se comparada com as indenizações dadas aos integrantes da luta armada.

Aloísio de Toledo César, desembargador aposentado, é advogado e jornalista. E-mail: aloisioparana@ip2.com.br