Título: Palmatória do mundo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/11/2009, Notas e informações, p. A3

Irritado, falando alto e com o dedo em riste, o presidente Lula investiu, na segunda-feira, numa entrevista em Roma, contra a decisão dos Estados Unidos, China e 21 outros países de barrar a aprovação de um acordo com metas específicas e compulsórias contra o aquecimento global, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a se iniciar em 7 de dezembro em Copenhague. Dois dias antes, em Paris, ele havia dito que "não temos o direito de permitir" que Washington e Pequim façam um acordo entre si a respeito, "com base apenas nas realidades políticas e econômicas dos seus países", e avisou que telefonaria aos presidentes Barack Obama e Hu Jintao para, em última análise, chamá-los à ordem. Em Roma, acrescentou à lista o primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh. Com o ardor de um cristão-novo e uma extravagante exibição de prepotência, tentava enquadrar os recalcitrantes.

O tom é o de quem, nas suas deambulações pelo mundo, acha que lhe basta a formidável popularidade de que desfruta no seu país para se tornar a palmatória do mundo e transformar a ordem internacional. "Todos terão que apresentar números", decretou, a propósito da questão das metas quantitativas de redução das emissões dos gases responsáveis pela elevação da temperatura no planeta. Até bem pouco, Lula se opunha a isso, no caso brasileiro. Mas isso foi antes de se dar conta de que a sua candidata Dilma Rousseff, desenvolvimentista à moda antiga ela também, tem de vestir verde para não fazer feio perto da ex-companheira Marina Silva, e que o prestígio dele próprio no exterior depende hoje da força com que abraçar a causa do clima. E é a busca de prestígio ? e não de objetivos palpáveis, por meios realistas ? que exacerba a oportunista diplomacia presidencial de Lula e move a sua política externa.

"Por que você pensa que o Brasil tomou a iniciativa de apresentar números?", perguntou retoricamente a um jornalista. "É para a gente poder cobrar daqueles que passam o tempo inteiro querendo dar lições ao Brasil. O Brasil fez a sua parte e eles têm de fazer a deles. Se o Brasil pode, os Estados Unidos podem fazer muito mais." Pega bem em casa, pela clave nacionalista, e pega bem lá fora, onde o combate à degradação climática provocada pelo homem é a maior, quando não a única, bandeira política das novas gerações. Na entrevista, Lula anunciou pela primeira vez que irá a Copenhague ? antes, ele dizia que a sua presença só teria sentido se os principais líderes mundiais também comparecessem. E não resistiu a mais uma bravata: "Eu já fui a Copenhague e ganhei uma coisa que muita gente achava que eu não ia ganhar, que foi a Olimpíada. Não custa nada ir lá e ganhar um numerozinho quando as pessoas não acreditam que vai ter nada mais."

Em Roma, onde Lula participou da Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, promovida pela ONU, os líderes presentes incluíam figuras do quilate dos ditadores Muammar Kadafi, da Líbia, e Robert Mugabe, do Zimbábue. Sabia-se que a reunião terminaria sem que as nações ricas se comprometessem com a meta de erradicação da fome no mundo em 2025, ou com o aumento da ajuda à agricultura dos países pobres. Mas não custava nada ir lá para ganhar prestígio, fazendo um verdadeiro comício sobre as proezas do seu governo na área social, do Bolsa-Família ao Luz Para Todos, e desancando os adversários, como se estivesse em um palanque ao lado de Dilma Rousseff para contrapor "nós" e "eles". Antes de sua ascensão, "a economia estava organizada para atender apenas 60% dos brasileiros", acusou. "Milhões de seres humanos eram vistos como estorvos." Já o seu governo "quebrou o ciclo perverso que perpetua a miséria e a desesperação".

A outra face da apoteose lulista é a política exterior que dela se alimenta. A crer no Itamaraty, o Brasil não terá mãos a medir se fizer o que dele alegadamente a comunidade internacional espera: mediar o conflito israelense-palestino, promover o diálogo entre o Irã e os Estados Unidos, ensinar às partes envolvidas como resolver o impasse em Honduras, distender as relações entre a Colômbia e a Venezuela ? Chávez, a propósito, já descartou a ideia brasileira de monitorar a fronteira dos dois países. A falta de seriedade disso tudo é proporcional à soberba do presidente que a inspira.