Título: País investiga acordo que impede acesso a remédio para hepatite B
Autor: Formenti, Lígia
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2009, Vida&, p. A22

Farmacêuticas teriam combinado uma divisão de mercado; medicamento é mais barato e traz menos risco ao doente

A Secretaria de Direito Econômico (SDE) investiga as empresas farmacêuticas Gilead e GSK por indícios de divisão do mercado brasileiro no fornecimento de remédios de hepatite B. A suspeita de um acordo ilegal surgiu quando o Ministério da Saúde, interessado no uso do medicamento Tenofovir para hepatite B, sugeriu à Gilead que registrasse no País a droga também para tratamento dessa doença. O Tenofovir já era usado para aids. A Gilead alegou que um contrato com a concorrente GSK impedia o registro.

Em e-mail enviado ao Estado, a americana Gilead reconheceu haver um acordo com a britânica GSK restringindo a venda do Tenofovir para hepatite. Ele teria sido fechado em 2002, quando a farmacêutica concedeu o direito de comercializar o Adefovir - também produzido por ela e indicado para hepatite - à GSK. É uma prática comum empresas concederem o licenciamento de seus remédios a outras farmacêuticas.

O contrato traz cláusulas específicas sobre a venda do Tenofovir nos locais onde a GSK comercializa o Adefovir.

A GSK Brasil informou que o contrato entre as duas empresas é global. "Em momento algum a GSK Brasil conversou com a Gilead e jamais houve pedido nosso em relação ao Tenofovir", informou, por e-mail, o gerente de comunicação cooperativa da GSK Brasil, João Domenech. Segundo ele, os acordos firmados pela empresa respeitam a legislação nacional.

O Tenofovir é distribuído pelo Ministério da Saúde desde 2003 para pacientes com aids. A discussão sobre ampliação do uso do medicamento ganhou força neste ano, quando o governo decidiu rever o tratamento de hepatite B. Já registrado nos Estados Unidos e na União Europeia para pacientes da doença, o Tenofovir foi considerado como a melhor opção pela equipe brasileira que preparava o novo protocolo.

Além de mais barato, ele traria um risco menor de pacientes desenvolverem resistência à droga, quando comparado a outros medicamentos - entre eles, o Adefovir. O remédio, no entanto, não poderia ser incorporado à lista se não tivesse esse registro na Anvisa.

Em setembro, em reunião entre Anvisa e a Gilead, houve comunicação formal de que tal registro não seria feito por restrições contratuais. "Foi-nos explicado que a Gilead estava impedida de vender Tenofovir no Brasil para hepatite B", diz o diretor da Anvisa, Dirceu Barbano.

A Anvisa então fez uma autorização de extensão de uso - caminho legal para o uso do Tenofovir também para hepatite B. "A medida pretende garantir à população acesso a uma droga indicada por especialistas como de primeira escolha. Procuramos garantir mais qualidade, por menor preço." A Gilead informou que a decisão da Anvisa obrigou a empresa a procurar um novo entendimento com a GSK. A ideia é tentar encontrar uma saída dentro do contrato. Domenech negou os encontros.

O procurador-geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) - autarquia especializada em fiscalizar e apurar abusos de poder econômico -, Gilvandro Coelho de Araújo, afirmou que um acordo entre farmacêuticas para venda de medicamentos, por si só, não é ilegal. "Há uma série de variáveis que precisam ser avaliadas." Como, por exemplo, a possibilidade de substituir um remédio por outro, sem que haja prejuízo ou comprometimento na qualidade do tratamento.

"Por vezes, uma eventual restrição à concorrência poderia ser compensada por outros elementos. É preciso verificar se a finalidade do acordo é legítima", diz o advogado especialista em direito da concorrência Túlio Egito Coelho. Para ele, se for comprovado o prejuízo à concorrência, as empresas podem ser penalizadas, mesmo em um acordo internacional. "O que importa é a ameaça à livre concorrência", completou. Procurada, a SDE não se manifestou sobre as investigações.

ENTENDA O CASO

2002: A empresa Gilead faz um acordo para que GSK licencie e comercialize o Adefovir, produzido por ela e usado para hepatite, em vários países

2004: GSK Brasil recebe liberação para registrar e comercializar o Adefovir no Brasil

2009: Já usado para tratamento de aids, o Tenofovir, da Gilead, é apontado por especialistas brasileiros como a melhor opção também para tratamento de pacientes com hepatite B

2009: Governo procura a Gilead para que ela registre o Tenofovir na Anvisa para uso no tratamento de hepatite B

Setembro de 2009: Em reunião na Anvisa, representantes da Gilead informam que acordo com a GSK a impede de fazer o registro

Outubro de 2009: Anvisa autoriza extensão de uso do Tenofovir

Novembro de 2009: SDE inicia investigação do acordo entre as duas empresas