Título: Cristina e Lula não removem barreiras
Autor: Marin, Denise Chrispim ; Monteiro, Tânia
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2009, Economia, p. B10

Licenças não-automáticas, centro dos desentendimentos atuais entre os dois países, continuam em vigor

Os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Argentina, Cristina Kirchner, mostraram-se ontem incapazes de contornar a controvérsia em torno das licenças não-automáticas aplicadas sobre as importações de produtos de lado a lado da fronteira. As medidas continuam a vigorar.

Como gesto paliativo, Lula e Cristina criaram uma comissão de ministros dos dois países, que se reunirá a cada 45 dias, para tratar as pendências, e avalizaram um documento de oito pontos, no qual seus governos indiretamente reconhecem que descumpriram regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre licenças não-automáticas.

Durante quatro horas, na manhã de ontem, autoridades das chancelarias e dos ministérios de indústria dos dois países tentaram, em vão, extrair uma solução para a controvérsia, que afeta entre 14% e 17% do comércio bilateral. O Brasil queria estabelecer um cronograma de eliminação gradual das licenças e interromper a adoção de novas barreiras. A Argentina queria que apenas o Brasil extinguisse as licenças para seus produtos.

O documento técnico avalizado por Lula e Cristina ontem traz um compromisso indireto da Argentina de expedir as licenças não-automáticas em até 60 dias, a partir do começo de 2010. Trata-se do prazo previsto pela OMC. Segundo o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, a Argentina demorava em torno de 180 dias para emitir as licenças a importadores de produtos brasileiros.

O Brasil, por sua vez, se comprometeu a informar previamente a Argentina sobre a adoção de licenças não-automáticas. O prazo definido pela OMC é de 21 dias. Ao adotar a aplicação das licenças não-automáticas, no mês passado, o governo brasileiro não tomou o cuidado de avisar antecipadamente a Argentina, que agora ameaçava iniciar um contencioso no tribunal do Mercosul.

Fontes do governo brasileiro resumiram que o entrave é "conceitual, quase ideológico". O Brasil crê que a melhor forma de impulsionar o desenvolvimento é o livre comércio - princípio básico do Mercosul. A Argentina insiste que, sem a administração do comércio, sua indústria vai desaparecer. A divergência emergiu até mesmo nos discursos de Lula e de Cristina, em almoço no Itamaraty.

"Nossa resposta à crise deve ser mais comércio e investimentos. O protecionismo não é solução. Apenas cria distorções difíceis de reverter", disse Lula. "A Argentina não pode desconhecer a escala da economia brasileira e a consistência de sua indústria, conquistada ao longo do tempo. Somos uma sociedade. Mas há um sócio maior e outro menor", contrapôs Cristina.

A presidente argentina assumiu um tom ácido ao rebater, em seu discurso, a declaração de Lula de que o Brasil é o destino de 70% das exportações industriais do país vizinho. Cristina afirmou que as exportações de manufaturas para a Argentina ajudam o Brasil a reduzir o seu déficit global no setor. Também insistiu que o argumento em favor da liberalização não passa de teoria. "Uma coisa é o que se diz e outra é o que as economias adotam."

Lula e Cristina decidiram que se reunirão a cada 60 dias. Mas, antes do próximo encontro, a comissão de ministros da Fazenda, Relações Exteriores e Indústria vai abordar o imbróglio das licenças e tratar dos casos de produtos brasileiros foram substituídos, na Argentina, por concorrentes de outros países, sobretudo chineses.

Esse novo grupo de trabalho se sobreporá a outro existente há quatro anos, em nível de vice-ministros, para tratar das barreiras aos mesmos produtos - a Comissão de Monitoramento do Comércio.