Título: Economia e fraternidade
Autor: Scherer, Dom Odilo P.
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/11/2009, Easpaço aberto, p. A2
Em 2010, o tema da Campanha da Fraternidade (CF-2010) será "economia e vida" e o lema, "vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro'' (Mt 6,24). Promovida todos os anos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, desta vez será por iniciativa ecumênica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs.
A "fraternidade" é expressão de uma antropologia segundo a qual os seres humanos, no fundo, são todos irmãos, membros de uma única família humana, com dignidade e direitos fundamentais comuns. Decorre daí, como consequência ética, que essa dignidade deve ser reconhecida em cada ser humano e os seus direitos fundamentais, respeitados e promovidos por todos. O que vale para um vale para todos. Essa também é a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Na visão cristã, dizemos ainda que todos os seres humanos são filhos queridos do mesmo Deus; por isso, enquanto membros da família de Deus, eles devem relacionar-se como verdadeiros irmãos, não importando as diferenças de raça, povo, nação, cultura ou condição social. E, por isso mesmo, toda ofensa ou o desrespeito ao próximo, assim como sua exclusão do acesso aos bens necessários à vida digna, também são ofensa a Deus.
Na CF-2010, a atividade econômica é o âmbito fundamental para a promoção e o exercício da fraternidade. O tema tem inegável pertinência e atualidade. Quem duvida de que é justamente nesse campo de ações e relações humanas que ocorrem as violações práticas e, mesmo, as negações mais flagrantes da fraternidade? Mas também é no âmbito das relações econômicas que se apresentam as oportunidades mais concretas para viver de modo efetivo a fraternidade. E mais: as ameaças cada vez mais evidentes contra a vida humana e, de modo geral, contra a vida na Terra também estão relacionadas diretamente a causas econômicas; como não podia deixar de ser, a prevenção desses riscos depende da reorientação das atividades econômicas - decisão difícil de ser tomada, quer para os comportamentos pessoais, quer para a política econômica nacional e global.
A recente crise financeira e econômica demonstrou mais uma vez que a economia sem critérios éticos, ou com critérios equivocados, não tem bases sólidas e suas consequências são a pobreza e o sofrimento de muitas pessoas, grupos e de inteiros povos. A atividade econômica, que tem como objetivo supremo, em vez do suprimento das necessidades básicas do ser humano, o lucro a qualquer preço e o acúmulo sempre maior de bens, gera multidões de famintos, deixados à margem do grande giro econômico, excluídos do bem comum.
Além disso, a lógica econômica que privilegia a produção e o consumo de supérfluos também se torna uma grave ameaça à sustentabilidade da vida no planeta Terra. O aquecimento global, a poluição do ar, das águas e do solo, a corrida para a posse e a exploração econômica dos recursos naturais, até sua exaustão, deixam evidentes os riscos para o futuro da nossa casa comum. Do ponto de vista social, as massas de empobrecidos, que migram para regiões mais prósperas do mundo, são consequência da atividade econômica desenvolvida por décadas, sem a preocupação básica com a solidariedade e a justiça econômica global. Mais que em outros tempos, hoje caímos na conta de que somos todos interdependentes; nossos benefícios também devem estender-se a todos, para que os males de outros não venham a ser nossos males também.
O papa Bento XVI, na sua mais recente encíclica - Caritas in Veritate (A Caridade na Verdade) -, recordou de maneira magistral um princípio antigo da Doutrina Social da Igreja, que continua atualíssimo na era da globalização econômica: o progresso dos povos só será autêntico se tiver em conta o bem de todas as pessoas e da pessoa toda. Para alcançar isso será necessária uma atenção sempre maior aos critérios da justiça social, da equidade e da solidariedade, para que os benefícios econômicos sejam efetivamente estendidos a todos. E teremos todos de aprender a viver de maneira mais sóbria, superando certo modo predatório de interagir com o próximo e com a natureza, assimilando sempre mais a ética do cuidado: se formos todos bons cuidadores da natureza, ela ainda continuará a nos sustentar por muito tempo. Os rumos da economia não podem ficar entregues apenas à lógica do mercado, orientada pelo apetite do lucro a qualquer custo.
O lema da CF-2010 é um dito do Evangelho, no qual Jesus adverte contra o apego ao dinheiro, que pode tornar-se um empecilho para acolher de coração livre e desimpedido o reino de Deus: esse é o bem supremo para o ser humano. "Não podeis servir a dois senhores porque ou odiareis a um e amareis ao outro, ou vos apegareis a um e desprezareis ao outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Lc 16,13). O amor servil ao dinheiro chama-se avareza e pode transformar-se em verdadeira idolatria, levando o homem a sacrificar tudo, mesmo os valores éticos, a saúde e a própria dignidade, para acumular bens. "Que proveito traz isso ao homem? Acaso pode o dinheiro comprar a vida eterna?", pergunta Jesus. A idolatria ao dinheiro cega e torna insensível o coração humano diante das necessidades e dos sofrimentos do próximo. E também dá certa sensação de onipotência, que faz passar por cima da Lei de Deus.
A CF-2010 abordará a questão econômica de maneira não acadêmica e, de certa forma, provocadora, a partir do olhar dos menos beneficiados pelas teorias econômicas convencionais e de critérios que, apesar de esquecidos, são determinantes para alcançar os objetivos prioritários da economia: pão na mesa, casa, educação, saúde e oportunidades de vida digna para todos os membros da família humana.
Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo