Título: Divergências sem fel
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/11/2009, Notas e informações, p. A3

Iniciativas sensatas, de parte a parte, em Brasília e Washington, reduziram às suas verdadeiras proporções as críticas do assessor diplomático do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, às posições do governo Barack Obama em relação à crise em Honduras, tratadas, entre outros assuntos, numa carta de 3 páginas enviada pelo dirigente americano ao seu colega brasileiro. Numa auspiciosa demonstração de maturidade, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, general Jim Jones, e o próprio Garcia apressaram-se a esvaziar a ideia de que o relacionamento bilateral entrara numa fase de turbulência capaz de transformar divergências normais entre países próximos em antagonismos políticos.

Sintomaticamente, o principal motivo da mensagem transmitida por fax ao Planalto no domingo, véspera da chegada do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, não embutia nenhum risco de confronto. Decerto os Estados Unidos prefeririam que o seu giro pela América Latina se circunscrevesse aos destinos previsíveis ? La Paz e Caracas. Mas, até porque foi Obama quem inaugurou a política de diálogo com o Irã sobre o seu temido programa nuclear, ele nem sequer insinuou uma eventual contrariedade em relação à visita. Em vez disso, instou Lula a aproveitar a ocasião para ressaltar a sua concordância com os esforços internacionais que visam a assegurar, mediante compromissos objetivos, que o programa só possa servir para fins civis. Era exatamente o que Lula pretendia fazer.

No discurso de saudação ao visitante, ao defender o direito do Irã de desenvolver um programa nuclear com fins pacíficos, ele não apenas invocou os acordos internacionais que regem esse tipo de atividade ? e que Teerã burla sistematicamente ?, como ainda o exortou a participar da busca de "uma solução justa e equilibrada para a questão". Na carta, quando abordou o caso de Honduras, um assunto infinitamente menos relevante na agenda americana, Obama justificou o apoio às eleições do próximo domingo no país, mesmo sem a prévia restituição do poder ao presidente Manuel Zelaya, deposto em junho. A eleição, escreveu, "zeraria" o impasse hondurenho. O Brasil, como se sabe, considera ilegítimo o pleito nessas condições e se nega de antemão a reconhecer o governo que dele resultar.

Obama também tocou em outro ponto de atrito com o Brasil ? o colapso da Rodada Doha de negociações para a liberalização do comércio mundial, por desinteresse dos Estados Unidos. Foi o que levou Marco Aurélio Garcia a dizer que a conduta do presidente americano deixava um "sabor de decepção". "Todo aquele clima favorável que se criou com a sua eleição (?) começa a se desfazer um pouco", avaliou na terça-feira. No dia seguinte, porém, no que foi descrito como uma cordial conversa telefônica de 20 minutos, Garcia explicou ao general Jim Jones que não há um "estranhamento" do Brasil em relação ao governo Obama, mas "percepções" diferentes. Para o assessor de Lula, não se dissipou a "grande expectativa positiva" em torno da sua presidência. Fontes americanas, de seu lado, argumentaram que a própria carta foi uma deferência ao Brasil.

Mais significativa foi a reação do chanceler Celso Amorim. Além de se dissociar das críticas de Garcia, das quais teria tido conhecimento apenas pela imprensa, disse taxativamente que "não há tensão alguma" entre Brasília e Washington. "Temos é de nos acostumar a ter diferenças", ponderou, citando exemplos anteriores de desencontros que tampouco provocaram tensões. Mantendo a linha, informou que Lula responderá a Obama de forma "educada, adequada, sempre salientando a possibilidade de cooperação, (mas) não deixando de destacar o ângulo como a gente vê as coisas". Ou seja, o governo brasileiro continua achando "equivocada" a atitude dos Estados Unidos em face de Honduras, mas Lula não repetirá o termo usado por seu assessor. Em diplomacia, as palavras valem tanto quanto a substância das posições que exprimem.

E a mensagem de parte a parte é que há muito mais em jogo no relacionamento bilateral do que o conflito político hondurenho. O Brasil tentou, em vão, convencer a Casa Branca a apoiar o adiamento das eleições no país. Se o pleito é um fato consumado, os Estados Unidos também sabem que seria fútil pressionar o Planalto a reconhecê-lo, a esta altura, como legítimo.