Título: O chanceler do MST
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2009, Notas e informações, p. A3

O Brasil pode juntar-se à França, maior defensora dos subsídios pagos a agricultores europeus, e à Líbia, país governado pelo coronel Muammar Kadafi, para propor um plano de regulação do mercado internacional de alimentos. Esse novo grande passo da diplomacia econômica brasileira está sendo ensaiado pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Gustavo Cassel, conhecido pela generosa distribuição de dinheiro a grupos vinculados ao MST, mas não pela competência em assuntos ligados à produção e ao comércio de produtos agrícolas. Mas as qualificações técnicas do ministro são apenas um detalhe nessa história. A quem compete, no governo brasileiro, discutir e negociar acordos internacionais de política agrícola?

Segundo o ministro da Agricultura da França, Bruno le Maire, seu país e o Brasil propõem a formação de estoques regionais de alimentos e a limitação da compra de terras por estrangeiros nos países em desenvolvimento. Os estoques deverão servir, segundo a proposta, para conter as oscilações de preços e para garantir a segurança alimentar dos pobres.

O ministro Cassel afirmou haver uma "agenda comum" Brasil-França e não uma proposta conjunta, segundo informou o jornal Valor nessa quarta-feira. Mas a "agenda comum" envolve um acordo sobre questões importantes, como indica uma declaração do ministro incluída na reportagem: "Concordamos em que não dá só para estimular a agricultura, mas precisamos de um equilíbrio fundiário, de regular a compra de terras por estrangeiros, sobretudo na África, além de um compromisso financeiro firme e estável com os organismos da área." O principal organismo é a FAO.

A conversa sobre esses pontos ocorreu na conferência sobre segurança alimentar, em Roma, no mês passado. A ideia de limitar as compras de terras por estrangeiros foi apresentada por Kadafi. Os países ricos, segundo ele, estão criando um "novo feudalismo" e usurpando direitos dos africanos. Algo parecido ocorrerá na América Latina, afirmou.

Diplomatas brasileiros ouvidos em Genebra negaram ter informações sobre a ação conjunta do Brasil e da França. Se eles não sabem, mas o ministro Cassel confirma a "agenda comum", há algo estranho na condução da política externa brasileira. De acordo com Cassel, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu colega francês Nicolas Sarkozy falaram sobre o assunto em Paris, antes da conferência de Roma. Lula, no entanto, não mencionou essa iniciativa em seus pronunciamentos, durante a reunião de cúpula, embora tenha falado sobre muitos assuntos e apresentado soluções para boa parte dos problemas da humanidade.

A "agenda comum" não é a primeira intromissão do Ministério do Desenvolvimento Agrário na diplomacia comercial. Algo semelhante ocorreu, de forma igualmente desastrada, na conferência ministerial da OMC em Hong Kong, em 2005. Nesse encontro, funcionários daquele Ministério apoiaram a manobra da Índia e de outros países em desenvolvimento em favor da adoção de salvaguardas especiais para a chamada pequena agricultura. No fundo, tratava-se de criar mais um instrumento protecionista - obviamente contra os interesses do Brasil, um dos maiores e mais eficientes produtores agrícolas. O Itamaraty acabou, sem contrapartida para o País, entrando nessa conversa.

Também não interessa à agricultura brasileira uma regulação do mercado com base em estoques reguladores - principalmente se esses estoques forem formados à custa dos grandes produtores. Se os europeus querem mesmo ajudar as ex-colônias africanas, podem fazê-lo, em primeiro lugar, eliminando subsídios e barreiras. O Brasil tem batalhado por isso na Rodada Doha, mas o ministro Cassel parece desprezar esse dado. Nessa segunda-feira, o ministro Le Maire voltou a defender a preservação da política agrícola europeia. Os europeus poderão ajudar os africanos também de outras formas - como tem feito o Brasil, por meio da transferência de tecnologia.

Já a proposta de regras internacionais para a compra de terras não tem o mínimo sentido. A regulação desse tipo de negócio cabe a cada país. O Brasil não tem de se meter nas decisões dos africanos nem de aceitar intromissões em sua política de terras.