Título: Para cumprir tabela
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2009, Notas & Informações, p. A3

Os presidentes dos quatro países do Mercosul devem reunir-se hoje em Montevidéu apenas para cumprir tabela. Não terão um único avanço para comemorar nem tentarão resolver qualquer dos graves impasses acumulados nos últimos anos. Protecionismo entre vizinhos, bitributação de bens originários de fora do bloco e incapacidade de celebrar acordos comerciais importantes compõem a parte mais notória de um balanço de frustrações. Há menos de um mês o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua colega argentina Cristina Kirchner se reuniram em Brasília para discutir os entraves ao comércio bilateral. Comprometeram-se apenas a administrar as barreiras de acordo com as normas internacionais. Não prometeram eliminá-las - como se o comércio livre não fosse uma condição essencial para o funcionamento de uma união aduaneira.

Assim é a relação entre as duas maiores economias do Mercosul - uma delas, a maior da América Latina, a outra, a terceira. Enquanto Brasil e Argentina se desentendem, os sócios de menor peso econômico, Paraguai e Uruguai, pouco podem fazer além de assistir ao fracasso de um grande projeto regional e ao desperdício de oportunidades de progresso e de inserção no mercado global.

O governo uruguaio já protestou mais de uma vez contra a limitação dos acordos com parceiros desenvolvidos, como os EUA e a União Europeia. O protesto é especialmente dramático porque nenhum sócio do bloco pode celebrar sozinho acordos de livre comércio com parceiros de fora.

Os entraves têm sido criados principalmente pelos governos da Argentina e do Brasil. Empresários brasileiros interessados em ganhar acesso aos mercados do mundo rico têm defendido, ocasionalmente, o abandono da fantasia da união aduaneira e o retorno do Mercosul à condição de zona de livre comércio. Nesse nível de associação, qualquer dos países-membros poderia negociar acordos com países ou blocos de outras áreas.

Mas os conflitos e desentendimentos intrabloco não são apenas de natureza comercial. Argentinos e uruguaios mantêm viva a desavença motivada pela construção de uma fábrica de celulose no Uruguai. A briga começou há três anos e ainda afeta o funcionamento do bloco. O governo argentino se opôs ao financiamento de um projeto de conexão elétrica entre San Carlos, no Uruguai, e Candiota, no Brasil. O dinheiro sairia do Fundo Estrutural de Convergência do Mercosul.

Com o encontro em Montevidéu, o governo uruguaio praticamente encerra mais um período de presidência do Mercosul. A presidência é rotativa e semestral. No segundo semestre de 2008, o governo brasileiro assumiu a função prometendo trabalhar pela solução de alguns velhos problemas. Até dezembro, segundo os planos, os quatro países-membros deveriam eliminar a bitributação de produtos originários de fora do bloco. Numa união aduaneira que funcionasse, a tarifa externa comum seria cobrada somente quando o produto ingressasse no bloco. No Mercosul, o bem é tributado nesse momento e taxado novamente se for transferido para outro país-membro. O governo paraguaio se opôs à mudança.

O bloco não dispõe de um código aduaneiro válido para os quatro sócios. Além disso, a tarifa externa comum é perfurada por múltiplas exceções, o comércio de veículos e peças continua sujeito a regras limitadoras e o recurso a medidas protecionistas tornou-se rotineiro. O protecionismo cresceu desde o agravamento da crise internacional, no ano passado, quando o governo argentino suspendeu o licenciamento automático de importações. Isso afetou as exportações de mais de 400 produtos brasileiros. Depois de muita protelação, Brasília ouviu os protestos da indústria nacional e decidiu retaliar, mas o outro lado não desistiu do conflito.

A agenda preparada para a reunião de Montevidéu inclui apenas questões de pouca ou nenhuma relevância, como o futuro da presidência da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, posto criado em 2003 para acomodar o ex-presidente argentino Eduardo Duhalde. Mas esse quadro pode ficar pior. Basta os Parlamentos brasileiro e paraguaio, seguindo o exemplo dos Congressos do Uruguai e da Argentina, aprovarem o ingresso do país de Hugo Chávez no Mercosul. O presidente venezuelano saberá como liquidar o bloco.