Título: A reeleição de Evo Morales
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2009, Notas & Informações, p. A3
Diante de uma multidão exultante, o presidente reeleito da Bolívia, Evo Morales, anunciou domingo à noite no seu discurso triunfal, da sacada do Palácio Quemado, em La Paz, que a amplitude da sua vitória o obriga a "aprofundar e acelerar" o processo de mudança iniciado com a sua primeira posse, em 2006 - a chamada "refundação do país". Por sinal, com a nova Constituição promulgada no ano passado, o próprio nome do país mudou: a República da Bolívia passou a se chamar Estado Plurinacional da Bolívia. Evo não explicou o que entende por aprofundar e acelerar, mas o que está em jogo são as complexas leis a serem apresentadas em 2010, com prazos preestabelecidos para aprovação, que devem traduzir na prática as provisões constitucionais sobre a autonomia administrativa das 36 "nações indígenas-camponesas" legitimadas pela Carta. Mais controvertida é a prevista escolha dos juízes pelo voto popular, porta de entrada para os "tribunais do povo" dos regimes totalitários.
O patrimônio político de Morales para levar adiante esses projetos é incontestável. Numa eleição considerada "exemplar" pela Organização dos Estados Americanos (OEA), ele não só se tornou o primeiro mandatário boliviano a conquistar um mandato consecutivo em 45 anos, como ainda o seu organizado partido Movimento ao Socialismo (MAS) obteve dois terços das cadeiras do Senado e tudo indica que fará o mesmo na Câmara dos Deputados, ou melhor, na Assembleia Plurinacional. O MAS, é bem verdade, perdeu nos Departamentos de Santa Cruz, Beni e Pando, que formam a Meia Lua, como é conhecido o arco de prosperidade da Bolívia, onde a oposição ao primeiro presidente indígena do país sempre foi intensa. Mas, em sentido partidário, a oposição praticamente se desmanchou - por falta de consistência, liderança e propostas dignas do nome. "Evo nunca mais", a sua palavra de ordem, foi tão rudimentar como irrealista.
Basta dizer que o principal adversário de Morales, Manfred Reyes Villa, tinha sido destituído do governo de Cochabamba nas urnas do referendo revogatório de 2008 - o mesmo que confirmou o mandato do presidente por formidáveis 67% dos votos. Ele se elegera com 54%. Anteontem, segundo as pesquisas de boca de urna, recebeu 63% dos 5,1 milhões de sufrágios, mais do que o dobro das preferências por Villa. A popularidade de Morales é vasta e genuína. A esmagadora maioria da população indígena - que por sua vez representa 62% dos 9,9 milhões de bolivianos - credita-lhe os avanços políticos substanciais de que passou a desfrutar. Na eleição de domingo, por exemplo, os novos "distritos indígenas" tiveram o direito sem precedentes de escolher 7 representantes para a Assembleia Plurinacional de 130 membros. Eles reivindicam 15, mas, diante dos protestos da oposição, o astuto Morales não os atendeu. Ainda assim, tinham o que festejar.
No segundo mandato, ele terá de conciliar as suas plataformas nativistas com as demandas das organizações indígenas pela autogestão das suas áreas, segundo seus princípios e procedimentos ancestrais, do que resultariam instituições e governos paralelos ou sobrepostos um pouco por toda parte do território - receita certa de conflitos, principalmente se não forem traçadas fronteiras nítidas entre o sistema jurídico nacional e as suas modalidades comunitárias. Morales tem um pé em cada universo. Ele ascendeu como sindicalista, mas a sua liderança brotou entre os cocaleros. Quando fala na refundação da Bolívia e no reconhecimento das aspirações da sua maioria secularmente oprimida, não vai a ponto de lhe transferir o controle direto das reservas nacionais de hidrocarbonetos. Disso La Paz não abrirá mão. A ampliação do papel do Estado na economia, aliás, também está na agenda das prioridades legislativas de 2010.
A nacionalização das riquezas minerais, em 2006, afastou os investidores e aumentou enormemente a dependência do país da economia do gás. Mas o governo não aplicou no setor os recursos que o modernizariam. "Novas nacionalizações poderão ocorrer", admite o cientista político Gonzalo Chávez, da Universidade Católica da Bolívia, "pois isso alimenta a popularidade de Evo." Do resto se encarregará a ideologia bolivariana de seu mentor Hugo Chávez, quem decerto ele tinha em mente quando disse que a sua vitória premiava os "presidentes, governos e povos anti-imperialistas".