Título: Nova onda de culto a Mao ameaça abertura da China
Autor: Trevisan, Claudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/12/2009, Internacional, p. A20

Especialista alerta para guinada à esquerda no comunismo chinês, acompanhada de maior supressão de liberdades

Trinta anos depois de a China abandonar o igualitarismo maoista e abraçar as regras de mercado capitalista, o culto a Mao Tsé-tung (1893-1976) ganha novo impulso, com a construção de estátuas gigantes com sua imagem no interior do país e a defesa de sua ideologia por facções que se fortalecem dentro do Partido Comunista. O esquecido slogan "Longa Vida ao Pensamento de Mao Tsé-tung" foi resgatado nas celebrações do aniversário de 60 anos da Revolução Comunista, em 1º de outubro, quando líderes proeminentes do partido lançaram mão da retórica maoista em seus pronunciamentos, afirma Willy Lam, professor da Universidade Internacional Akita, no Japão, e da Universidade Chinesa de Hong Kong. Classificando o fenômeno de "perturbador", Lam diz que sua manifestação física mais evidente é a construção de gigantescas estátuas de Mao Tsé-tung em províncias do interior do país, distantes da próspera região leste, onde estão Xangai e Pequim. A seguir, os principais trechos de sua entrevista ao Estado:

Qual é a força do movimento de resgate de Mao Tsé-tung e como ele se manifesta?

Estátuas de Mao estão sendo levantadas em várias cidades e elas são maiores e mais altas que as antigas. A imprensa oficial está reimprimindo os ditados, fotos e feitos do Grande Timoneiro. O neto de Mao, Mao Xinyu, de 39 anos, que é pesquisador de uma academia militar, deve se tornar o mais jovem general do país no próximo ano, de acordo com a imprensa chinesa. E o que é mais significativo é que as teorias de Mao sobre a concentração do poder na liderança do partido, a exaltação de glórias nacionalistas, o desrespeito à liberdade individual e aos direitos humanos estão sendo revividas pela administração de Hu Jintao.

Por que o sr. diz que renascimento do maoismo é perturbador?

Por enquanto, a ressurreição das normas maoistas não afetou a política de abertura econômica de Pequim. No entanto, na arena político-ideológica, isso representa um retrocesso. A mídia e os fãs de Mao parecem ter esquecido os terríveis erros cometidos durante seu longo reinado, incluindo a horrenda Revolução Cultural (1966-1976) e a Grande Fome (1959-1962). A história está sendo deliberadamente distorcida pelas autoridades.

O maoismo estava realmente esquecido, a ponto de podermos falar em uma nova onda?

O rosto de Mao aparece em todas as notas de yuans que circulam na China, seu retrato continua na entrada da Cidade Proibida e seu corpo embalsamado está no centro da Praça Tiananmen. Nas primeiras duas décadas depois do início das reformas de Deng Xiaoping (1904-1997), que começaram em dezembro de 1978, Mao era amplamente visto como o fundador heroico da nova China, mas também como responsável por políticas terrivelmente equivocadas e cujo governo ditatorial resultou em massivo atraso e sofrimento, para não mencionar a estagnação econômica das décadas de 60 e 70. Deng foi uma vítima dos expurgos de Mao e o odiava. Mas o grande arquiteto das reformas tinha de invocar o nome de Mao para justificar a continuidade no poder do Partido Comunista da China. É por isso que o retrato de Mao vai continuar na Praça Tiananmen (onde fica a Cidade Proibida) por um longo tempo - isto é, enquanto o PCC continuar no poder.

Quais são as razões do resgate do maoismo e o que ele revela sobre o futuro político da China?

Indica que não haverá nenhuma liberalização política no futuro previsível. O PCC está levantando novamente a bandeira do maoismo para justificar sua legitimidade. Mais ênfase será dada na busca de glórias nacionais, como colocar o homem na Lua e construir porta-aviões.

O fenômeno ocorre em toda a China ou apenas em algumas regiões?

O fenômeno é generalizado, ainda que suas manifestações físicas, como as estátuas de Mao, sejam encontradas apenas nas províncias centrais e da região oeste, e não na costa leste.

O sr. afirma que Xi Jinping, o provável sucessor de Hu Jintao, é um dos principais promotores do resgate do maoismo. Isso significa que seu eventual governo será mais esquerdista que o atual?

Existe um sólido consenso entre as facções da liderança do partido de que todos os governantes devem seguir a "política de portas abertas". Isso significa fazer reformas de mercado parciais e apostar na globalização econômica, ao mesmo tempo em que mantêm a estrutura leninista do partido. Xi Jinping não pode ser considerado um apoiador de reformas políticas ou institucionais. Mas tendo sido dirigente em duas províncias da costa leste, Fujian e Zhejiang, e secretário-geral do PCC em Xangai, eu não creio que ele vá retroceder no processo de reformas de mercado. Xi está celebrando os valores maoistas para promover suas credenciais políticas. Ele é filho do veterano revolucionário e ex-premiê Xi Zhongxun e acredita que possui "sangue revolucionário".

Pode haver aumento da interferência estatal na economia em razão da nova onda maoista?

O movimento é emblemático da mudança do partido para a esquerda e da intensificação da disputa entre suas facções internas. Na China, o "esquerdismo" refere-se a valores doutrinários socialistas, à ênfase no monopólio do poder nas mãos do partido e a um distanciamento do livre mercado. Logo depois da crise financeira internacional, a política econômica passou a mostrar tendências antimercado, quando não uma reafirmação de valores como a orientação da economia pelo Estado, que eram observados durante o período de Mao. Em áreas que vão da mineração ao transporte, empresas estatais estão engolindo as empresas privadas. Além disso, companhias geridas pelo governo são as principais beneficiárias do pacote de estímulo de US$ 585 bilhões anunciado há pouco mais de um ano, assim como do US$ 1,1 trilhão em empréstimos concedidos pelos bancos chineses nos três primeiros trimestres de 2009.

O resgate do maoismo significa que os líderes atuais apoiam seu igualitarismo radical ou é mais um símbolo da manutenção da influência do partido?

Essa nova onda reflete a nostalgia de parte da população em relação ao período igualitário dos anos 50 e 60, quando todos eram pobres e ninguém se considerava explorado. Esse sentimento é mais comum entre camponeses e trabalhadores pobres, que são os perdedores das reformas realizadas por Deng Xiaoping. No momento que a China é tomada pela corrupção também há nostalgia de um período de governo relativamente mais limpo.

Nos últimos meses aumentaram as prisão de dissidentes e cresceu a censura. Pequim está caminhando na direção oposta de reformas políticas?

Sim, Hu Jintao está colocando toda a ênfase na manutenção do monopólio do poder nas mãos do PCC. A tolerância em relação a dissidentes e até ONGs não-políticas diminuiu. O governo aumentou o controle sobre a mídia e especialmente a internet, suspeita de ser um ferramenta para a infiltração de perigosos ideais ocidentais de democracia. Isso deve continuar quando a nova geração comandada por Xi Jinping assumir o poder em 2012.

Parece haver um processo de beatificação do líder comunista, com pessoas acreditando que ele pode realmente protegê-las na adversidade. O partido apoia a construção dessa aura religiosa em torno de Mao?

Ele é visto por chineses supersticiosos como um deus que irá protegê-los contra o demônio ou a má-sorte. Muitos taxistas e caminhoneiros penduram um minirretrato de Mao no retrovisor na crença de que ele irá protegê-los nas perigosas estradas chinesas.