Título: O novo CEP de Guantánamo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/12/2009, Notas e informações, p. A3

Quando o presidente Barack Obama, no dia seguinte à sua posse, em 20 de janeiro, anunciou a decisão de fechar em um ano a infame prisão de Guantánamo, parecia que ele se dera esse prazo para resolver a situação dos cerca de 240 suspeitos de terrorismo então detidos sem julgamento na base militar americana em Cuba. Por ali passaram, entre 2002 e 2008, perto de 800 "combatentes ilegais" - na esdrúxula definição fabricada pelo governo Bush para não ter que considerá-los nem prisioneiros de guerra, o que lhes daria os direitos previstos nas Convenções de Genebra, a começar da proteção contra a tortura, nem presos comuns, o que obrigaria a tratá-los pelas leis penais americanas, com as salvaguardas nelas previstas.

Se aquele era, de fato, o seu objetivo, Obama subestimou o emaranhado jurídico e os obstáculos políticos dos quais teria de se desvencilhar para atingi-lo. Mas é provável que o novo presidente, interessado em reconstruir de imediato a imagem de seu país, tenha querido, isso sim, criar um fato de repercussão internacional que demonstrasse que os EUA, conforme prometera ao longo da campanha, virariam a página no campo dos direitos humanos, sistematicamente violados pelo antecessor no combate aos perpetradores do 11 de Setembro e seus aliados. Guantánamo se tornara o símbolo primeiro das enormidades praticadas contra os inimigos reais e presumíveis do país, com a autorização ou a cumplicidade tácita da Casa Branca.

A administração Obama reduziu a 210 a população encarcerada na ilha, com a transferência de 30 presos para outros países. Dez - entre os quais Khalid Sheikh Mohammed, o cabeça dos atentados de 2001 - foram escolhidos para ser julgados por tribunais civis ou pelas comissões militares que Obama desistiu de extinguir. Mas ao longo do ano ficou claro não só que o chamado "centro de detenção" de Guantánamo dificilmente seria desativado na data prometida, o que o presidente acabaria tendo de admitir, como também que dezenas de presos, no limbo legal, nem sequer poderiam ir a julgamento. Ou por falta de provas ou por terem sido as suas confissões extraídas sob tortura. Tampouco poderiam ser soltos - onde? - ou devolvidos aos países de origem. Muitos dos 116 suspeitos dos quais as autoridades americanas até querem se livrar não teriam quem os acolhesse.

Diante dessa situação kafkiana, o melhor que Obama conseguiu foi anunciar, na terça-feira, a compra de um presídio de segurança "supermáxima" praticamente vazio no interior de Illinois, e transferir para lá, não se sabe quando, um número também indeterminado de presos - talvez uma centena. Isso, segundo o governo, permitiria fechar a cadeia de Guantánamo "em tempo oportuno, de modo seguro e de acordo com a lei". Falta a Casa Branca combinar com o Capitólio, apesar da sua maioria nominal nas duas Casas. O Congresso proibiu que se trouxessem para solo americano detentos da base que não tenham sido processados. E dezenas deles permanecerão presos indefinidamente sem processo. Eles são considerados perigosos demais para merecer a liberdade, ainda que no exterior, assim como são frágeis demais as evidências contra eles - do contrário iriam a juízo.

De sua parte, a minoria republicana fará o que puder para obstruir qualquer mudança nessa legislação ou bloquear os recursos necessários à realocação dos detentos. A oposição ameaça não autorizar nem "um centavo" para o que considera "um risco desnecessário para o povo americano". Por motivos diametralmente opostos, as organizações de defesa dos direitos humanos também condenam a iniciativa de Obama. "Os detentos que forem transferidos não são acusados de crime algum", observa o diretor da Anistia Internacional nos Estados Unidos, Tom Parker. "Em sete anos, o governo, incluindo a CIA e o FBI, não produziu uma única prova que permita levá-los a um tribunal." Em 2005, a entidade declarou Guantánamo um "Gulag ocidental", numa alusão aos campos de prisioneiros da antiga União Soviética.

A incapacidade de Obama de desmontar a bomba-relógio que herdou de Bush parece justificar o comentário cáustico de Parker, para quem "a única coisa que o presidente anunciou que vai fazer é mudar o código de endereçamento postal (CEP) de Guantánamo".