Título: É preciso depender menos da sorte :: Marco Antonio Rocha
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/12/2009, Economia, p. B2
Certamente, não foi para tirar um pouco das alegrias do Natal que o Banco Central (BC) anunciou, na quinta-feira, por intermédio do seu diretor do Departamento de Economia, Altamir Lopes, que espera para 2010 um déficit em conta corrente do balanço de pagamentos da ordem de US$ 40 bilhões, e não mais de US$ 29 bilhões, como previra antes.
Um aumento dessa ordem, entre duas previsões, gera um calafrio entre os que acompanham a evolução das contas brasileiras, internas e externas, e principalmente entre quem já festejava, antecipadamente, um 2010 de bonança para todo o mundo.
Se o déficit de 2010 bater com a previsão do BC, chegará à casa de 2,08% do Produto Interno Bruto (PIB). Antes, estimava-se que alcançaria 1,76% do PIB. O maior déficit que o Brasil teve recentemente nessa conta foi equivalente a 4,19% do PIB, em 2001, portanto, ainda no governo Fernando Henrique. E, desde então, conforme frisou o jornal Valor, "não se vê fluxo tão negativo quanto o esperado para 2010".
Este poderia ser um problema muito grave para o andamento da economia brasileira, não só no próximo ano, como nos anos seguintes, não fosse, também, a perspectiva de maior entrada de investimentos estrangeiros diretos no País, cuja estimativa passou de US$ 38 bilhões para US$ 45 bilhões. Na verdade, um financiamento que o Brasil recebe do exterior para complementar os investimentos internos e alavancar o ritmo de crescimento da economia, "um financiamento da melhor qualidade", nas palavras do mesmo diretor do Banco Central.
De fato, não parece que muitos analistas considerem que o problema do déficit seja grave, ou possa tornar-se grave, dentro e fora do Banco Central. Altamir Lopes diz que um déficit em conta corrente, anual, da ordem de 2% do PIB "é razoável e sustentável". E Gustavo Loyola, que já foi presidente do BC e hoje está na consultoria privada Tendências, diz que o déficit "é sustentável nos níveis projetados" e que "o fluxo de capitais externos será mais do que suficiente para financiá-lo". E um outro economista, André Perfeito, da Gradual Investimentos, dizia que com US$ 240 bilhões de reservas cambiais o Brasil tem tranquilidade para esperar que a economia mundial volte a crescer, "a demandar produtos brasileiros e a puxar nossas exportações".
O financiamento do déficit em conta corrente está garantido por um certo prazo, a menos que ele comece a aumentar muito. E por que aumentaria? Por causa, por exemplo, de um desequilíbrio em outra conta, a das transações comerciais.
Nas novas previsões do BC, o superávit comercial estimado para 2010 caiu de US$ 19 bilhões para US$ 15 bilhões, embora as receitas obtidas com exportações continuem aumentando. O problema é que as despesas com importações continuam aumentando ainda mais. Por isso a previsão agora é que as exportações rendam US$ 170 bilhões (ante US$ 167 bilhões na previsão anterior) e as importações nos custem US$ 155 bilhões (estimava-se, antes, US$ 148 bilhões).
Olhando assim o quadro geral para 2010, pode-se dizer que o ano não deverá oferecer sustos e solavancos dignos de nota. A economia brasileira deve poder atravessá-lo em voo de cruzeiro - mantidas as coisas como estão, ceteris paribus, como diriam os economistas que gostam de pensar que estudaram latim, embora o latim tenha sido alijado das escolas secundárias brasileiras antes de a maioria dos economistas brasileiros passar por elas.
Mas é bom notar que o quadro das previsões do Banco Central também revela o quanto um desenvolvimento econômico tranquilo e sustentável deste país ainda depende da conjunção condicionante "se". Se o fluxo de investimentos diretos continuar positivo; se a conta de comércio não se deteriorar demais; se os bancos internacionais continuarem desejosos de emprestar para empresas brasileiras; se o dólar não se desvalorizar muito e se o real não se valorizar muito - as coisas continuarão manejáveis no front externo.
Já no front interno, os "ses" abrangem outra ordem de fatores: se a demanda não esquentar além da conta; se a produção industrial puder acompanhar o ritmo da procura; se a média dos salários, principalmente nas camadas de baixa renda, se elevar moderadamente; se os juros continuarem sua caminhada decrescente, mas cuidadosa; se não houver uma irrupção de heterodoxia no Banco Central - as coisas aí também continuarão manejáveis.
O que se destaca, em síntese, de quase todas as análises que lemos a respeito dos rumos da economia brasileira, é que precisaríamos deixar, o quanto antes e na maior escala possível, de depender de tantos fatores aleatórios, se realmente quisermos assumir o posto tão desejado de nação respeitável e confiável, no longo prazo, pois é isso que garante espaço e condições para nos desenvolvermos com segurança.
E precisamos demais de desenvolvimento seguro, pois é só isso que pode realmente "tirar o povo da merda", e não apenas a vontade do nosso elegante presidente. A cena, vista nas TVs do mundo inteiro, de um enorme contingente de homens, mulheres, crianças, jovens e velhos tentando tocar suas vidas, caminhando com água pelos joelhos, durante dias seguidos, na maior cidade do País - uma das maiores do mundo -, virtualmente desamparados pelo Estado brasileiro, por nossos serviços públicos, mostra que precisamos de muitos e muitos anos de crescimento econômico expressivo e seguro. Não há como dar cabo dessas cenas terríveis do nosso cotidiano de misérias sem anos e anos de crescimento seguro da economia, do emprego, das atividades familiares e comerciais.
E isso, só eliminando ao máximo a esperança do "se acontecer" para garantir um padrão seguro do que "vai acontecer".
*Marco Antonio Rocha é jornalista. E-mail: marcoantonio.rocha@grupoestado.com.br