Título: O paciente do SUS e o câncer
Autor: Fonseca, Roberto Porto ; Lima, Enaldo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/01/2010, Espaço aberto, p. A2

Os cancerologistas brasileiros estão cada vez mais preocupados com a deterioração progressiva das condições do atendimento ao paciente oncológico pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2010 estima-se que no Brasil ocorrerão cerca de 489 mil novos casos de câncer, com mortalidade em torno de 160 mil pacientes. Além da crescente incidência de casos por fatores causais, como envelhecimento da população, exposição a fatores de risco como tabagismo, exposição solar excessiva, dieta inadequada e sobrepeso ou obesidade, há um aumento significativo da prevalência da doença, com um grande número de sobreviventes em atividade e em tratamento.

O problema é que o tratamento de câncer no Brasil, no que se refere ao SUS, deixa enormes lacunas nas opções à disposição dos cancerologistas, impossibilitados de utilizar tecnologias e drogas já incorporadas à prática médica há muito tempo.

Cerca de 80% dos casos são tratados no âmbito do SUS. Os dados atualizados do Ministério da Saúde revelam que, ao longo de 2008, 305 mil pacientes receberam tratamento sistêmico (quimioterapia ou hormonoterapia) pelo SUS, tornando imperiosa a adoção de novos medicamentos e tecnologias, bem como a atualização da tabela de procedimentos oncológicos, nos quais ocorreram apenas alterações pontuais nos últimos 11 anos, sendo transferida parte dos custos para os prestadores de serviço.

As políticas adotadas para a inclusão de procedimentos médicos no SUS, na área de oncologia, excluem o uso de drogas como anticorpos monoclonais, que, em várias indicações (como câncer de mama e linfoma não-Hodgkin), têm o seu uso consagrado há vários anos, com aumento significativo da taxa de cura.

Nenhum cancerologista aceita conviver com essas limitações ao tratamento nem pode concordar com a existência de pacientes de primeira classe, atendidos pela rede hospitalar privada, e de pacientes de segunda classe, atendidos pelo SUS ou mesmo desassistidos em razão da demanda reprimida.

Exemplo do equívoco de tais políticas foi a forma como se incorporou a droga imatinibe à tabela de procedimentos da oncologia no SUS em 2001. Na época, o governo promoveu a isenção de impostos para o medicamento para que o preço ficasse compatível com o valor pago pela autorização de procedimentos ambulatoriais de alto custo (Apac).

Ainda assim, o procedimento era deficitário para os prestadores de serviço, pois o valor pago cobria apenas o preço do medicamento, o que era insuficiente para arcar com os custos operacionais do procedimento, incluindo aí honorários médicos, despesas com pessoal, custos de faturamento, impostos, conservação e ampliação da infraestrutura, além das crescentes exigências da Anvisa.

O número de pacientes que usam imatinibe vem se avolumando, o que o torna extremamente oneroso para o sistema, a tal ponto que em 2007 o gasto do Ministério com essa medicação totalizou R$ 203 milhões, ou seja, 19,8% de todo o gasto do SUS com quimioterapia, embora o número desses pacientes representasse menos de 2% do número total em tratamento oncológico.

Um problema muito grave são as consequências da Portaria Ministerial nº 649, de 13/11/2008, que estabelece o uso do dasatinibe no tratamento de leucemia mieloide crônica, refratária ao imatinibe. Os valores estipulados para o procedimento com essa portaria inviabilizam o tratamento da população necessitada, já que não garantem nenhuns recursos além do simples custo da medicação, o que significa dizer que não há remuneração dos profissionais, nem mesmo o pagamento dos custos diretos e indiretos do atendimento.

É urgente também a necessidade de revisão do orçamento ministerial destinado aos procedimentos da oncologia clínica, assim como melhoria no acesso e na cobertura do atendimento cirúrgico oncológico e de radioterapia. Para piorar, alguns setores da consultoria técnica do Ministério da Saúde não levam em conta que as instituições prestadoras de assistência nessa área (hoje, na sua totalidade, complexos hospitalares, já que desapareceram os antigamente denominados serviços isolados) arcam com um volume enorme de custos.

Desde 2004 soluções técnicas bem fundamentadas vêm sendo discutidas pelas Sociedades de Especialidades, em conjunto com o órgão normatizador da política de atenção oncológica do Ministério da Saúde, o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Essas propostas já foram aprovadas no Conselho Consultivo do Inca (Consinca) sem implantação efetiva pelo Ministério da Saúde e há um atraso de mais de dez anos na inclusão de procedimentos sabidamente curativos, que teriam salvo a vida de milhares de pacientes, a despeito de sucessivos alertas das Sociedades de Especialidades ao Ministério da Saúde.

A atual situação do atendimento dos pacientes com câncer no âmbito do SUS vem sofrendo uma deterioração progressiva nos últimos anos e a grande maioria dos procedimentos terapêuticos possíveis de ser utilizados têm defasagem de até 20 anos com relação à melhor tecnologia disponível. Mesmo o atendimento inicial do paciente oncológico deixa em muito a desejar, pelo enorme atraso e, em grande número de casos, pela perda da possibilidade curativa com cirurgia ou radioterapia, dada a dificuldade para a realização de exames básicos ou que muitas vezes acarretam também mutilações possíveis de ser evitadas.

Os cancerologistas do Brasil defendem a justiça e a equanimidade no tratamento clínico do câncer e pedem ao Ministério da Saúde que examine, com prioridade, a inclusão de novas tecnologias e de medicamentos oncológicos, tendo como objetivo final o respeito ao paciente de oncologia atendido pelo SUS.

Roberto Porto Fonseca, cancerologista, preside a Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC). Enaldo Lima, oncologista, clínico, preside a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc)