Título: Nova crise na Argentina
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/01/2010, Notas e informações, p. A2

Quanto mais seu prestígio vai sendo corroído por suas próprias atitudes, mais aumenta a avidez por poder da presidente argentina Cristina Kirchner, que quer exercê-lo além dos limites da lei. Essa perigosa lógica política, exibida de maneira cada vez mais aberta desde a posse, em dezembro, do novo Congresso argentino, no qual o governo é minoritário, ameaça levar a uma crise institucional, depois que Cristina Kirchner exigiu ? sem ter bases legais para isso ? a renúncia do presidente do Banco Central (BC), Martín Redrado, que tem mandato concedido pelo Congresso até 23 de setembro e, por isso, se recusou a atender à exigência.

No dia 14 de dezembro, o governo argentino baixou um decreto de urgência e necessidade ? instrumento semelhante à medida provisória brasileira ? que cria o Fundo Bicentenário, destinado a pagar US$ 6,5 bilhões da dívida externa argentina que vence ao longo de 2010 e a ser constituído com transferências de recursos que compõem as reservas do Banco Central argentino.

O uso desse tipo de medida foi contestado por vários congressistas, que questionam sua constitucionalidade, pois não se identificam, nesse caso, nem urgência nem necessidade, visto que o orçamento do governo central para 2010 prevê recursos para o pagamento da dívida que vence no ano.

Além disso, o uso de reservas internacionais para o pagamento da dívida daria ao governo a oportunidade de utilizar em outros programas os recursos já previstos no orçamento para essa finalidade, o que tornaria ainda mais frouxa uma política fiscal que é muito criticada pela oposição.

A gestão das reservas ? de aproximadamente US$ 48 bilhões ? é tarefa de competência exclusiva do Banco Central. Apesar das crescentes pressões do governo, Redrado vinha se recusando a fazer a transferência, por motivos fortes, e de interesse do país.

A Argentina está prestes a fechar acordo com credores que detêm cerca de US$ 20 bilhões da dívida do país, não incluídos em negociações anteriores. O uso das reservas ? que permitem ao país enfrentar dificuldades na área externa e dão mais garantias aos credores ? para cobrir despesas do governo geraria desconfiança entre os detentores de títulos da dívida. A desconfiança poderia levar os credores a impor condições mais duras para renegociar seus papéis ou simplesmente a recorrer à Justiça para receber aquilo a que têm direito.

Irritada com a resistência de Redrado, Cristina Kirchner "exigiu" sua renúncia. Mas o presidente do Banco Central não é obrigado a aceitar a exigência. A Carta Orgânica do Banco Central argentino, aprovada por lei de 1992, estabelece que ? como entidade autárquica do Estado nacional, não dependente do governo ? "o Banco Central não estará sujeito a ordens, indicações ou instruções do Poder Executivo" na formulação e execução da política monetária e financeira.

A Carta Orgânica do BC também dispõe que o presidente da República pode remover diretores da instituição, nos casos de má conduta ou descumprimento dos deveres de funcionário público. Mas condiciona o afastamento desses diretores à prévia aprovação por uma comissão do Congresso, presidida pelo presidente do Senado e formada pelos presidentes das Comissões de Orçamento e de Economia da Câmara e do Senado.

Desse modo, em primeiro lugar, a presidente Cristina Kirchner precisará demonstrar que Redrado não está cumprindo seus deveres, o que não será tarefa fácil. Depois, terá de enfrentar uma comissão presidida por Julio Cobos, atual vice-presidente da República, que está rompido com os Kirchners há dois anos e pretende candidatar-se à próxima eleição presidencial. E, com a posse dos novos parlamentares ? eleitos em junho do ano passado, mas empossados apenas em dezembro ?, o governo perdeu a maioria nas duas Casas do Congresso.

Acumulando rebeliões de antigos aliados ? a de Cobos e, agora, a de Redrado, que concordava com a maioria das decisões do governo na área econômica ?, sem garantias de apoio no Congresso e prestes a enfrentar novo locaute dos ruralistas, que o mantiveram paralisado no seu início, o governo de Cristina Kirchner, apesar de sua insaciável sede de poder, está cada vez mais fraco. O que talvez não seja ruim para os argentinos.