Título: A biodiversidade que habita o corpo humano
Autor: Reinach, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/01/2010, Vida&, p. A23

Bactérias não estão na lista dos seres vivos preferidos pela humanidade. Essas minúsculas criaturas contaminam nossos alimentos, provocam intoxicações e mortes. Muitas doenças são causadas por bactérias, da sífilis à tuberculose, passando por parte das pneumonias, das infecções urinárias, da garganta e de pequenos ferimentos.

Não é sem motivo que a descoberta dos antibióticos é considerada uma das importantes da medicina.

O que a maioria das pessoas desconhece é que, mesmo quanto estamos perfeitamente saudáveis, centenas de espécies de bactérias chamam nosso corpo de "lar, doce lar".

Intestinos, boca, ouvido e pele são alguns dos lugares habitados por bactérias. Elas são importantes para nossa saúde, nos ajudam a absorver nutrientes e treinam nosso sistema imune a identificar outras bactérias causadoras de doenças.

Ao ocupar muitos desses locais, as bactérias "do bem" impedem que as bactérias "do mal" (patogênicas) ocupem estes hábitats. Os cientistas estimam que em nosso corpo existem dez vezes mais bactérias que células. Nosso corpo é constituído por aproximadamente 10 trilhões de células e abriga 100 trilhões de bactérias.

Agora, pela primeira vez, um grupo de cientistas realizou um censo demográfico das populações de bactérias que habitam o corpo humano. O objetivo é conhecer quem mora onde e dessa maneira tentar estabelecer qual a população e a distribuição das bactérias em pessoas normais.

Nove adultos saudáveis foram analisados. Cada pessoa foi examinada em quatro datas distintas ao longo de três meses. Em cada data foram coletadas amostras em 27 locais do corpo de cada pessoa. Dezoito locais recobertos por pele, como testa, axilas, braços, pernas e pé foram raspados para coletar amostras de bactérias. Cabelo, intestino, boca, cera do ouvido e secreção nasal também foram amostrados.

Foram obtidas amostras de 27 hábitats de cada uma das 9 pessoas em quatro datas distintas, um total de 972 amostras. De cada amostra foi isolado o DNA das bactérias. Como os genes de cada espécie de bactéria é diferente e grande parte deles já é conhecido, bastou sequenciar todas as cópias de um único gene em cada amostra para identificar que espécies de bactérias estavam presentes e com que frequência. Foram identificadas centenas de espécies de bactérias, distribuídas em 22 filos (grandes famílias), mas a grande maioria delas (92%) pertencia a somente 4 filos (actinobactérias, firmicutas, proteobactérias e bacteriodetas).

Comparando as populações presentes em cada uma dessas 972 amostras, foi possível descobrir algumas correlações importantes. Primeiro, as variações ao longo do ano não são muito grandes - os habitantes do seu nariz não mudam muito ao longo dos meses. Segundo, as variações entre os hábitats em uma mesma pessoa são grandes: as bactérias que habitam locais muitos diferentes como sua testa e suas fezes são diferentes, o que era de se esperar. A surpresa foi que hábitats semelhantes, como a testa e as costas da mão, também são habitados por populações diferentes de bactérias. Além disso, foi descoberto que o mesmo hábitat em diferentes pessoas (por exemplo, as testas de diferentes pessoas) é mais parecido entre si que hábitats semelhantes em uma mesma pessoa (a testa e a mão de uma única pessoa).

Com base em dados como esses, os cientistas concluíram que diferentes pessoas são habitadas pelas mesmas bactérias, mas que cada região de nosso corpo possui uma população característica de bactérias. As bactérias parecem ocupar os diferentes hábitats presentes no corpo humano do mesmo modo que os vertebrados ocupam os hábitats em uma floresta: aves na copa das árvores, peixes nos rios e mamíferos em terra firme. As 100 trilhões de bactérias que ocupam os hábitats do nosso corpo parecem estar razoavelmente bem organizadas, cada uma em seu devido lugar.

O fato de nosso corpo abrigar uma enorme biodiversidade de bactérias, organizadas em dezenas de hábitats distintos, cumprindo funções específicas, nos torna um verdadeiro ecossistema, algo semelhante a uma enorme floresta tropical.

Fernando Reinach *fernando@reinach.com

Biólogo

Mais informações: Bacterial community variation in human body habitats across space and time. Science, vol. 326