Título: A China será a próxima Enron? (Parte 2)
Autor: Friedman, Thomas L.
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/01/2010, Economia, p. B4
Na semana passada, escrevi uma coluna sugerindo que embora alguns mercados chineses superaquecidos, como o imobiliário, possam oferecer oportunidades de venda a descoberto, eu me acautelaria com o argumento de que a economia chinesa hoje não passa de uma grande bolha convidativa à venda a descoberto, como Dubai. Senhores, gostaria de rever e emendar agora minhas observações.
Há uma posição a descoberto, uma grande posição a descoberto que me intriga na China. Não estou certo sobre quem faz o mercado nessa área, mas aí vai: se a China obrigar o Google a sair, eu apostaria contra o Partido Comunista Chinês.
Eis por quê: as companhias chinesas são hoje tanto mais atrasadas como mais avançadas que a maioria dos americanos percebe. Na verdade, há duas economias chinesas hoje em dia. Há o Partido Comunista e suas filiais, vamos chamar isso de China Comando. Essa abarca as empresas estatais muito tradicionais. Ao lado dessa, há uma segunda China, concentrada principalmente em cidades costeiras como Xangai e Hong Kong. Esse é um setor empreendedor que desenvolveu técnicas sofisticadas para gerar e participar de "fluxos" de conhecimento empresarial diversificados e de alto valor. Eu chamo isso de China Network.
O que há de tão importante nos fluxos de conhecimento? Para mim, eles são a chave para compreender a história do Google e por que se deve apostar contra o PC chinês.
John Hagel, o conhecido escritor sobre negócios e consultor de gestão argumenta em seu recém-lançado "Shift Index" que estamos no meio da "The Big Shift" (a grande mudança). Estamos mudando de um mundo onde a principal fonte de vantagem estratégica era proteger e extrair valor de um dado conjunto de estoques de conhecimento ? a soma total do que sabemos em qualquer ponto do tempo, que agora está se desvalorizando em ritmo acelerado ? para um mundo em que o foco da criação de valor é a participação efetiva em "fluxos" de conhecimento que estão sendo continuamente renovados.
"Descobrir maneiras de se conectar com pessoas e instituições possuidoras de conhecimento novo torna-se cada vez mais importante", diz Hagel. "Pois há muito mais pessoas inteligentes fora do que dentro da organização de alguém."
E, no mundo plano de hoje, podem-se acessar todas elas. Portanto, quanto mais uma companhia ou país puder se conectar com fontes importantes e diversificadas para criar conhecimento, mais prosperará. E, se não fizer, outros o farão.
Eu argumentaria que a China Comando, em seus esforços para suprimir, reduzir e canalizar os fluxos de conhecimento para domínios politicamente aceitáveis que mantenham indefinidamente o controle do Partido Comunista ? isto é, censurar o Google ? está se contrapondo cada vez mais à China Network, que está prosperando com a participação em fluxos de conhecimento globais.
É disso que trata a guerra sobre o Google: ela é uma representação de um símbolo da capacidade que os chineses terão de buscar e se conectar livremente sempre que suas imaginações e impulsos criativos os tomem, o que é decisivo para o futuro da China Network.
Não tenham dúvida, a China tem algumas companhias de classe mundial antenadas que já estão "no fluxo", como a Li & Fung, empresa de vestuário de US$ 14 bilhões com uma rede de 10 mil parceiras comerciais especializadas, e a Dachangjiang, fabricante de motocicletas.
Os fluxos que ocorrem numa base diária nas redes dessas companhias chinesas para fazer design, inovação de produto e gestão de cadeia de suprimentos e agrupar a melhor expertise global "são diferentes de tudo que companhias americanas imaginaram", disse Hagel.
Os orquestradores dessas redes "encorajam os participantes a se congregar de uma maneira ad hoc para enfrentar desafios inesperados de desempenho, aprender mais uns com os outros, e trazer para dentro gente de fora na medida da necessidade". "Companhias mais tradicionais movidas por um desejo de proteger e explorar estoques de conhecimento limitam as parcerias que fazem."
A China Comando prosperou até agora sobretudo aperfeiçoando o modelo do século 20 de fabricação a custo baixo baseado no garimpo de estoques de conhecimento e limite de fluxos. Mas a China só prosperará no século 21 ? e o PC sobreviverá no poder ? se conseguir que um número maior de suas empresas migre para o modelo do século 21 da China Network.
Isso significa capacitar um número cada vez maior de pessoas, universidades e companhias chinesas para participar dos grandes fluxos mundiais de conhecimento, especialmente aqueles que conectam muito além da indústria estabelecida e das fronteiras do mercado.
Para sua infelicidade, a China parece estar apostando que pode combinar três impulsos ? controlar fluxos por razões políticas, manter as fábricas do século 20 da China Comando por razões de emprego e expandir a China Network do século 21 por razões de crescimento.
Mas as contradições dessa combinação solaparão os três. O modelo Comando, do século 20, ficará pressionado. O futuro é dos que promovem fluxos de conhecimento mais ricos e cada vez mais variados e desenvolvem as instituições e práticas necessárias para aproveitá-los.
Portanto, a China Comando, que quer censurar o Google, está trabalhando contra a China Network, que prospera com o Google. Por enquanto, parece que a China Comando prevalecerá. Se isso ocorrer, eu gostaria de vender o Partido Comunista a descoberto.
*Thomas Friedman é escritor e comentarista político