Título: A reforma do processo penal
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2010, Notas e informações, p. A3

A primeira versão do projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), elaborada por uma comissão de juristas para substituir o velho Código editado há sete décadas, pela ditadura varguista, foi aprovada em votação simbólica no apagar das luzes de 2009 por uma comissão especial do Senado. O projeto deveria seguir diretamente para o plenário, como determina o regimento. Contudo, por iniciativa dos senadores que mais se envolveram na discussão da matéria, o texto primeiramente será enviado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para ser aperfeiçoado.

Como o projeto contém vários dispositivos polêmicos e muda radicalmente a estrutura da legislação processual penal em vigor, a decisão de submetê-lo à apreciação da CCJ foi prudente. Embora as inovações tenham sido propostas por renomados juristas, algumas delas vêm sendo criticadas por promotores que as classificam como utópicas.

Entre as alterações propostas destaca-se, por exemplo, a atualização dos valores da fiança. Atualmente, quando a infração é punida com pena de prisão de até dois anos, a fiança é fixada entre 1 e 5 salários mínimos; e, quando a pena é de até quatro anos, ela é estipulada entre 5 e 20 salários mínimos. Nos dois casos, o juiz pode reduzir esses valores em até dois terços ou aumentá-los em até dez vezes, conforme a situação econômica do réu. A Comissão Especial do Senado estabeleceu que, quando a pena for superior a oito anos, o juiz poderá fixar o valor da fiança entre 1 e 200 salários mínimos; e, quando a pena for inferior a oito anos, a fiança ficará entre 1 e 100 salários mínimos. A redução de até dois terços do valor da fiança permaneceu para os réus pobres. Contudo, se os réus forem ricos, o juiz poderá elevá-la em até cem vezes.

Outra inovação importante é a redução do número de recursos judiciais previsto pelo CPP de 1941. Com um número menor de recursos, preservando-se, contudo, o direito de defesa e o princípio da presunção de inocência dos réus, as ações poderão tramitar mais rapidamente. O objetivo foi adequar o processo penal à Constituição de 88 e obter um "ganho qualitativo", fechando as portas para as artimanhas protelatórias dos advogados, diz o jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, membro da comissão que redigiu o anteprojeto.

A inovação mais importante está na redefinição das funções dos chamados "operadores do direito". O anteprojeto redefine a função dos promotores. "O Ministério Público deverá dar conta da acusação e produzir provas que sejam capazes de levar à condenação", afirma Coutinho, depois de lembrar que a sistemática em vigor permite aos promotores fazer denúncias sem provas. "Hoje, muitos não têm grau de maturidade constitucional adequada. Não é só acusar por acusar", conclui.

O anteprojeto também prevê a participação de dois juízes no processo penal. O primeiro será responsável pela instrução do processo e o segundo, pela sentença. Adotado em vários países, esse sistema tem por objetivo preservar a imparcialidade do julgamento. A justificativa é de que um só juiz, fazendo a instrução do processo, deferindo prisões e ordenando quebra de sigilo, perderia a isenção para julgar.

Com receio de perda de prestígio e de prerrogativas, o Ministério Público se opõe a essa inovação. A própria magistratura a considera utópica, pois sua implantação exigiria do Judiciário recursos de que não dispõe. Segundo a Associação dos Magistrados Brasileiros, seriam necessários mais de mil novos juízes. Isto porque, em 21 Estados, há cerca de 1,1 mil comarcas com apenas um magistrado. No interior do Nordeste, diz o presidente da entidade, Mozart Valadares Pires, há casos de um único juiz ter de responder por duas comarcas distantes mais de 100 quilômetros.

Considerando todos esses problemas, a comissão especial do Senado agiu com bom senso quando propôs que o anteprojeto do novo CPP seja aperfeiçoado pela CCJ, antes de ser submetido ao plenário. Embora a legislação processual penal em vigor seja anacrônica e ineficiente, não faz sentido substituí-la por outra que, apesar de inovadora, seja inviável na prática.